A Universidade Estadual Paulista (Unesp) iniciou, nesta semana, a distribuição do Guia de Prevenção ao Assédio, por meio do qual orienta a comunidade acadêmica sobre como proceder se algum caso for identificado e dissemina o princípio de respeito à diversidade. Ao todo, 5 mil exemplares estarão em circulação nos 24 campi da instituição de ensino, onde também serão afixados 1.750 cartazes com a temática.
A ação foi desenvolvida no âmbito do projeto Educando para a Diversidade, que leva ao ar um programa homônimo, veiculado semanalmente pela TV Unesp. O guia foi idealizado pela Universidad Complutense de Madrid, que autorizou a Unesp a replicar o projeto.
Bastante instrutivo, o material explica com ilustrações quais são os comportamentos que tipificam assédio, esclarecendo que o crime assume variadas formas, como a de cunho sexual e a de cunho moral. Pode-se resumir assédio como todo gesto que viole a dignidade de outra pessoa e alimente um ambiente de intimidação, hostilidade ou segregação. O guia também reúne leis e normas que podem auxiliar a vítima a compreender quais são seus direitos e também a denunciar o caso à Ouvidoria da instituição.
Entrevistada pela Agência Brasil, a ouvidora-geral da Unesp, Cláudia Maria de Lima, destacou que a instituição vem discutindo o assunto mais intensamente desde 2015. Em março daquele ano, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Trotes, da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), encerrou as investigações e apresentou relatório final, depois de reunir 9 mil declarações e documentos que denunciavam abusos sofridos por alunos em festas estudantis.
Ao todo, foram realizadas 37 audiências públicas. O presidente da CPI, deputado estadual Adriano Diogo (PT), chegou a afirmar que os trotes de calouros deveriam ser classificados como tortura e que a investigação não tinha a intenção de adotar uma perspectiva “moralista ou persecutória”. Uma universitária da Unesp que prestou depoimento à comissão contou que foi, como muitas colegas, obrigada a beber e a participar de festas e que chegou a presenciar assédios sexuais cometidos contra estudantes mulheres.
“A Unesp começou a ver como uma necessidade, quer dizer, pensar a cultura da violência dentro da universidade de maneira mais firme”, diz Cláudia Maria.
Subnotificação e relações de poder
A ouvidora, que também é professora do curso de pedagogia na Unesp, avalia que a instituição tem agido com pulso firme diante dos casos de assédio. Somente em 2019, 14 ocorrências de assédio sexual foram reportadas à Ouvidoria.
Cláudia, porém, diz que o número de notificações não representa a realidade. “É um número pequeno, pensando que são 52 mil pessoas na Unesp toda, entre alunos de graduação e pós-graduação. Existem pessoas que não denunciam por medo e, às vezes, por vergonha, por não saber o que fazer”, explica.
Por vezes, quem comete a violência sexual é o professor. Cláudia Maria observa que esse tipo de situação ocorre com menos frequência e que a vítima, sobretudo se está em posição hierarquicamente inferior à do agressor, tende a guardar o ocorrido para si, por pensar que sua versão será desacreditada. “É entre alunos a maioria [dos casos de assédio sexual]. E, normalmente, são situações que acontecem em repúblicas.”
“A nossa expectativa é que, com a distribuição do guia, [a Ouvidoria] receba um aumento [de denúncias], porque a vítima normalmente tem receio, porque existem relações hierárquicas envolvendo isso”.
Se o autor do crime for um professor ou um servidor técnico-administrativo, a Ouvidoria abre um processo para apurar o caso, quando a denúncia é formalizada. A direção abre sindicância, ouve tanto a vítima como o acusado e analisa documentos como o boletim de ocorrência protocolado junto à Polícia Civil. As penalidades previstas são suspensão, punição e demissão/exoneração. O servidor, docente ou não, fica sujeito a responder à Corregedoria.
Resistência independente
Embora a percepção da ouvidora seja a de que as situações de assédio sejam “muito vistas como situações inaceitáveis” na Unesp, a aluna do curso de psicologia da Unesp Isabela Tamaki afirma que a impunidade ronda os casos de assédio sexual. Ela relembrou à Agência Brasil a história do grupo que integra, o AYA Coletivo Feminista de Bauru, que foi articulado como reação das estudantes mulheres a uma série de assédios sexuais perpetrados por um professor da universidade.
O professor, lamentou à reportagem, não chegou a ser demitido. “Ele [o professor] acumulou dezenas de denúncias e acabou sendo remanejado para outro curso e, depois, para outra faculdade, outro campus da Unesp. Mas ele não foi demitido.”
O AYA Coletivo já tomou a frente de discussões sobre violência sexual, organizando, em 2018, uma roda de conversas com o tema Drogas e assédio sexual em jogos universitários, que atraiu mulheres e homens, conforme mencionou Isabela. Para a estudante, o correto é que as universidades estimulem todos a refletir sobre o que é masculinidade e como a agressividade fomentada por o referencial masculino afeta as pessoas e vitima, sobretudo, mulheres.
Na opinião de Isabela, uma das questões que devem ser levadas em consideração é que os veteranos nem sempre induzem calouros a fazer o que não querem “de maneira coercitiva óbvia”. Ela acrescenta que tal sutileza também marca, frequentemente, os casos de assédio sexual e que estes necessariamente se constituem sobre uma relação de poder.
Isabela diz ainda que não acredita que a expulsão ou a demissão resolvam, de forma isolada, o problema do assédio. O caminho que propõe é a educação, que, segundo ela, exige “um esforço muito amplo e sistêmico”. “A gente queria que [os homens] fossem reeducados. Eles foram educados para serem violentos”.
Sobre o papel do coletivo, Isabela entende que consiste em acolher as estudantes da Unesp. “A gente percebe que o partilhar traz muito conforto, vê que existe um poder terapêutico”, afirma.
Quanto a essa forma de organização, a ouvidora Cláudia Maria faz uma colocação. Ela diz considerar esses espaços importantes, inclusive porque podem ser eles que apresentam formalmente a queixa contra o agressor, quando a vítima não se sente confortável para fazê-lo. A única condição que merece atenção, argumenta, é que as integrantes respeitem a privacidade da vítima. “Porque, às vezes, ela conta prum colega de um coletivo e isso é colocado em um perfil de Facebook e, pronto, ela está exposta.”