No livro A queda do céu, o xamã yanomami Davi Kopenawa conta que seu povo chama a natureza de Urihi a, a terra-floresta, e que, para eles, os espíritos xapiri são os verdadeiros donos dela, e não os humanos. Na obra, o líder indígena afirma crer que tais entidades conheciam a ecologia muito antes dos não indígenas, embora não empregassem essa designação. Por entender que os indígenas estavam adiantados no entendimento do assunto, ele decidiu, ainda jovem, deixar sua tribo, a fim de fazer suas próprias palavras “saírem do silêncio da floresta” e se propagarem no mundo.
Expressões idiomáticas indígenas como a do povo yanomami serão tema do II Congresso Internacional sobre Línguas Indígenas e Minorizadas (Cirlin), que começa hoje (1º) e vai até o próximo sábado (6), na Universidade de Brasília (UnB). O evento tem reconhecimento da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e reunirá representantes de 29 instituições de ensino e pesquisa. Foram confirmados 200 participantes externos à comunidade da UnB, dos quais 80, aproximadamente, são estrangeiros, oriundos de países como Chile, Bolívia, Nicarágua, Peru, Canadá, Nova Zelândia, Estados Unidos e Espanha.
Por sugestão da Organização das Nações Unidas (ONU), celebra-se, em 2019, o Ano Internacional das Línguas Indígenas. A data ganhou um site alusivo, que explica por que a preservação desses idiomas é importante para a história e o patrimônio cultural de diversos povos e mostra iniciativas que colaboram nesse sentido.
Um levantamento da ONU indica que, atualmente, existem cerca de 6 a 7 mil línguas no mundo, sendo que 97% da população mundial fala somente 4% delas. Ou seja, um grupo pequeno de pessoas, que totaliza 3% da população global e é, majoritariamente, indígena, mantém vivos 96% de todas as línguas existentes em todo o planeta.
Domínio sobre a terra e a língua materna
A professora Ana Suelly Arruda Câmara Cabral, que organiza o II Cirlin, diz que a interência de outro idioma dentro das tribos aumenta o risco de desaparecimento de algumas línguas autóctones. “Primeiro, eles precisam de uma comunidade de fala e, se precisam de uma comunidade de fala, precisam de um território. Se não tiver a terra indígena, com o povo dentro, não tem língua. E, se eles não podem viver praticando a sua língua decentemente, sem grandes interferências do português, suas línguas não vão sobreviver”, argumenta a docente, que coordena o Laboratório de Línguas e Literaturas Indígenas (Lalli), da UnB.
Estudando há mais de 30 anos as línguas indígenas, entre elas as dos troncos linguísticos Tupi e Macro-Jê, Suelly comenta que o que mais a impressiona, ainda hoje, são as reações de pesquisadores indígenas que passam a analisar a fundo suas próprias línguas. “Nessa perspectiva de revitalização e fortalecimento, o que há de mais interessante são os indígenas que vêm fazer mestrado e doutorado com a gente, quando estão aprendendo sobre como funciona a língua deles. Porque eles são falantes plenos, são os verdadeiros conhecedores da língua, mas não têm conhecimento da organização interna delas. É muito importante quando eles começam a descobrir como elas funcionam e começam a se apaixonar e a entender a beleza enorme que é cada língua. E a vontade de lutar pela documentação dessas línguas, para coletar todas as histórias, prestar atenção quanto ao modo como os mais velhos falam, para trazer isso para os seus alunos. Isso, pra mim, é um fator muito importante”, diz. Para ela, a vinda de pesquisadores indígenas para as universidade é um dos caminhos para a continuidade dessas línguas. “Mas esse é um dos caminhos: a formação de pesquisadores e professores indígenas de linguística, que tenham essa consciência da importância da preservação de suas línguas, da documentação e da transmissão mais adequada possível para as próximas gerações, para terem uma política linguística dentro de casa”, acrescenta.