A terça-feira gorda é prenúncio da despedida da maior festa popular do país e tem sabor de pressa: ela requer dos foliões que cada segundo seja bem aproveitado, pois é o último dia. E Brasília, especialmente nos últimos cinco anos, aprendeu bem a lição. Verdade que o carnaval da capital federal existe desde que a cidade ficou pronta, mas os últimos anos foram especiais. Os brasilienses redescobriram a rua como espaço para brincar e, por isso, o assunto da coluna de hoje são os quatro motivos momescos para amar Brasília.
Esta coluna elenca 60 motivos, ao todo, até o dia 21 de abril – data em que a capital do país completará seis décadas. Já apresentamos lugares essenciais, os roqueiros, os cineastas e os dançarinos. Hoje, respeitando a saudade contida no último dia de folia e homenageando a história do carnaval brasiliense, cá está um pouco dessa história…
44 – Aruc e as escolas
Muitas são as escolas de samba do Distrito Federal. Certa vez, acompanhando uma entrevista com a sambista Dhi Ribeiro, a ouvi falar que “Brasília deveria retomar a tradição do carnaval de passarela do samba. As escolas de samba são, como o nome diz, escolas – é nelas que todo sambista começa”. Já há seis anos o governo local não libera verba pública para a realização deste formato de carnaval. As escolas, no entanto, participam da festa ao se apresentarem nas ruas, junto aos blocos. Mas aquele envolvimento que criam com toda uma comunidade, que se reúne para construir carros alegóricos, costurar fantasias e colocar o enredo na avenida, este tem se perdido neste período. E, com isso, muitas histórias também. Histórias como a da Aruc.
Aruc é a sigla para Associação Recreativa Unidos do Cruzeiro. Cruzeiro é um bairro residencial, bem próximo do chamado Plano Piloto (que delimita o que seria a Brasília, propriamente dita). Foi construído para abrigar funcionários públicos que chegavam após a construção da capital e sua transferência do Rio de Janeiro – o que tornou o bairro conhecido por ser tipicamente carioca. E, num bairro carioca, urgia a criação de uma escola de samba. Em 21 de outubro de 1961, portanto pouco após um ano da inauguração de Brasília, era fundada a Aruc. Que, desde então, coleciona 31 vitórias do carnaval candango, nos 48 desfiles oficiais que participou – só não esteve nos anos em que não houve o evento e em um com o qual a diretoria da escola discordou da estrutura montada e resolveu não aderir.
Apadrinhada pela Portela, do Rio de Janeiro (RJ), a Aruc tem como símbolo o Gavião – o mesmo da escola-madrinha e também primeiro nome do bairro, que a princípio era o Bairro do Gavião – e, também seguindo a escola carioca, as cores azul e branco. É, portanto, a mais exitosa em relação a títulos no carnaval da cidade. Mas outras escolas de samba tradicionais da cidade, como a Acadêmicos da Asa Norte (fundada em 1969), aguardam o retorno dos investimentos públicos no carnaval de passarela.
43 – Pacotão e os blocos tradicionais
Um é a própria acidez e crítica. Outro, um bocado do carnaval de Recife e Olinda. O terceiro, a animação baiana. Juntos, formam os blocos tradicionais que animam as ruas de Brasília há pelo menos 20 anos: Pacotão, Galinho de Brasília e Baratona – o primeiro de todos a surgir, em 1976. E que, desde 1992, faz a festa com um bloco siamês, o dos Raparigueiros (também considerado tradicional na capital).
O Pacotão, surgido em 1978, traz já no nome o tom de crítica: é uma alusão ao chamado “Pacote de Abril”, editado em 1977 pelo então presidente militar, General Ernesto Geisel. O pacote de medidas fechou temporariamente o Congresso Nacional e editou uma nova Constituição, ampliando o mandato do presidente de cinco para seis anos e alterando a composição do Congresso, que, quando reaberto, teria maioria de senadores indicados pelos militares. O Pacotão, então, desfilou em 1978 com marchinha que dizia “Ayatolá! Venha nos salvar! Que este governo já ficou gagá-gá-Geisel!”, andando na contramão da principal avenida de comércio e serviços de Brasília, a W3.
42 – Babydoll, Divinas e Suvaco: o novo carnaval
A bem da verdade é que, de meados da década de 90 até por volta de 2006, o carnaval de Brasília foi se tornando minguado. Era comum que as saídas da cidade lotassem, bem como o movimento da rodoviária e aeoroporto, porque quem tivesse condição, buscava o carnaval no Rio de Janeiro, em Salvador ou no Recife. Com cidade à míngua, os poucos foliões que ficavam buscavam os salões de clubes, os blocos tradicionais e o desfile de escolas, mas nada de tornar a festa quantitativamente representativa.
Cansados desse clima de ter que gastar rios de dinheiro para curtir carnaval, um grupo de jovens do Cruzeiro e do Sudoeste (bairro vizinho) resolveu que haveria, ao menos, pré-carnaval interessante na cidade. Formaram o Suvaco da Asa, bloco que sairia 15 dias antes da folia, no fim de semana, acompanhado da Orquestra Marafreboi (Maracatu, Frevo e Boi Bumbá). Isso em 2006. O sucesso foi tamanho que, das 200 e poucas pessoas presentes em 2008, a coisa perdeu o controle em 2015, quando o espaço tradicional ficou pequeno para 80 mil foliões.
Praticamente o mesmo que houve com o “Babydoll de Nylon”. Com o slogan “o menor, o mais ridículo e o menos promissor bloco de Brasília”, o número de foliões a brincar não passava de 100, em seu primeiro desfile, como mini-bloco contíguo ao Galinho de Brasília e utilizando uma caixa de som e uma Pampa velha. Bem diferente das 160 mil pessoas que seguiam o bloco em 2017, o que fez com que muitas ocorrências policiais tivessem mais destaque que a festa, nas notícias sobre o bloco. Desde então, os organizadores buscam a fórmula adequada para conseguirem reerguer o bloco. Em 2018 resolveram não sair. Ano passado, apesar da estrutura gigantesca, novamente foi difícil controlar a multidão e este ano, não houve novamente.
Enquanto isso, muitos novos blocos foram surgindo: o Aparelhinho, o Bloco do Amor e o Divinas Tetas – que propõe um carnaval em ritmo tropicalista e que reuniu, ano passado, 70 mil pessoas na área central de Brasília. Este ano, a apresentação será só após o carnaval, devido a problemas com o alvará para a realização do bloco.
41 – Colombina e Setor Carnavalesco: os empreendedores
Com a reativação do carnaval de rua de Brasília – em 2017, o governo local estimou que 1,5 milhão de pessoas esteve nas festas – novas oportunidades de negócios em escala social surgiram. A ponto de, hoje, haver lojas provisórias abertas exclusivamente para o período momesco, que funcionam em modo colaborativo (ou seja, os inúmeros artistas e artesões deixam seus produtos confeccionados à mão para venda). Houve quem enxergasse, ainda, a possibilidade de animação de setores da cidade antes deixados à míngua. É o caso do Setor Comercial Sul, área na região central de Brasília destinado apenas à empresas.
O produtor cultural Caio Dutra, desde 2016, encampa uma luta para o uso do Setor em toda a sua potencialidade. Brasília vive um embate entre moradores e comércio travado por marcos legais como a Lei do Silêncio (Lei Distrital 4.092/2008), que impede a realização de muitos eventos fora do horário comercial devido à emissão de ruídos, tanto provocados pela música quanto pelo fluxo intenso de pessoas. Como filho de um empresário do Setor Comercial, Caio enxergava na área a possibilidade de resolver a questão. Hoje, o carnaval rebatiza o espaço como “Setor Carnavalesco Sul”, para usar a mesma sigla oficial, SCS. E é um dos polos mais animados de diversão momesca, sempre de graça. A iniciativa atrai 50 blocos, 200 artistas e pelo menos 400 empregos, sendo 30 para pessoas em situação de rua (que tradicionalmente ocupavam o Setor).
Neste vídeo, os realizadores pedem a contribuição de foliões, após o cancelamento de verbas para a realização do carnaval deste ano no espaço. Para ajudar, clique aqui. Outra produtora cultural da cidade, Jul Pagul, que era dona o extinto Balaio Café, é responsável por iniciativa semelhante, na Asa Norte de Brasília, onde a concentração momesca é chamada de “Praça dos Prazeres”.
No campo dos negócios sociais, destaque para a Minha Colombina. Mais do que uma marca de roupas para o carnaval, a iniciativa da jornalista Maria Carolina Lopes é um pequeno negócio que movimenta, desde 2015, a economia, em pequena escala, em Brazlândia – cidade do Distrito Federal a cerca de 60 quilômetros do centro. Nela, costureiras do bairro são convidadas ao trabalho na temporada de carnaval, e a campanha de divulgação ainda trabalha com o conceito de body positive – ou seja, roupas para todos os corpos e formatos. O ponto alto da iniciativa é o ensaio fotográfico realizado todos os anos. Confira o papo que tive com Maria Carolina, no Youtube, em 2019:
E aquele papo de sair de Brasília para pular o carnaval? Ih, isso já não existe mais. E faz tempo!
*Morillo Carvalho é apresentador do programa Fique Ligado