No mês da Consciência Negra, espaços de memória da presença africana no Rio de Janeiro enfrentam cenários distintos. Enquanto o Cais do Valongo – tombado como Patrimônio da Humanidade em 2017 – passa por revitalização, atrações do Circuito da Herança Africana, na zona portuária, região conhecida como Pequena África, esperam por apoio para manter as portas abertas.
O professor de História Flávio Henrique Cardoso, que promove aulas públicas para ensinar a história da região e da chegada dos africanos escravizados no país, lamenta a situação de abandono que alguns espaços se encontram. “Há alguns anos, você andava pela Pequena África e tudo era bem mais limpo, mais cuidado. O Jardim Suspenso do Valongo já está um pouco abandonado, tem locais sem luz, com calçamento solto. Falta manutenção. A região não está tendo atenção”, disse.
O Jardim Suspenso do Valongo fica na Rua Camerino, na encosta do Morro da Conceição, em frente ao Largo do Depósito, conhecida, atualmente, como Praça dos Estivadores. O local concentrava casas de engorda para tratar dos negros cativos até que estivessem em condições de serem vendidos como escravos enquanto o comércio de pessoas ocorria na própria praça.
Cardoso também destacou a Casa da Tia Ciata, matriarca do samba do início do século 20. O pequeno espaço cultural que funciona abaixo do Jardim Suspenso, assim como o Centro Cultural Pequena África, que funciona dentro do jardim, não conseguem manter as portas abertas todos os dias. “São entidades privadas [responsáveis pelos locais], mas precisariam de uma ajuda do governo. As casas são cedidas pela prefeitura [do Rio], mas as pessoas que cuidam têm que bancar aquilo ali. Elas não moram lá, então têm um custo de transporte. Os voluntários vão quando podem, fazem alguns eventos, mas não têm horário fixo. O Centro Cultural Pequena África é pequenininho, mas tem alguns materiais que foram encontrados ali na região, é um local de memória bacana de ser visitado”, descreveu Cardoso.
O Jardim Suspenso do Valongo foi construído como parte do projeto de urbanização do início do século 20, quando a região foi valorizada com o aterramento e a construção do porto em 1906. Segundo o professor, a obra teve a intenção de ocultar o tempo da escravidão, que não combinava com uma cidade moderna no molde parisiense.
“Foi quando se viveu no Rio de Janeiro um período de Belle Époque, com várias construções em andamento como o Theatro Municipal, o Museu de Belas Artes e o Palácio Pedro Ernesto. Ali foi construído aquele jardim suspenso com o objetivo de passar a ideia de um novo Rio de Janeiro”, lembrou o professor.
Pelas contas de Cardoso, a cidade perdeu mais de 3,5 mil imóveis históricos desde o início do século 20 com as grandes obras como a construção das avenidas Rio Branco e Presidente Vargas e o alargamento de outras ruas. Um deles foi a casa da Tia Ciata, que ficava na Praça 11 e foi derrubada para abertura da avenida Presidente Vargas.
Pretos Novos
O principal local do circuito que precisa de recursos é o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN), onde foi encontrado o Sítio Arqueológico Cemitério dos Pretos Novos, na Rua Pedro Ernesto. O lugar recebeu de forma degradante os corpos de negros cativos que morriam na chegada ao país, chamados de pretos novos pela condição de recém-chegados.
A presidente do IPN, Merced Guimarães dos Anjos, diz que o instituto nasceu para “contar a história daqueles que escaparam da escravidão dando suas vidas”. De acordo com ela, desde 2017 o local tem enfrentado dificuldade e só continua funcionando por abrigar cursos de pós-graduação lato sensu em parceria com a Universidade Santa Úrsula, com especializações em História da Cultura Africana e Afro-brasileira e em Turismo Cultural.
“A gente abre essas portas por causa desses dois cursos e de pessoas que fazem pequenas doações. A gente precisa de mil pessoas doando R$ 10 por mês para manter aberto, mas a gente não conseguiu, só chegamos a 100 pessoas. O repasse da universidade está demorando porque eles também estão com problema. A gente precisa de R$ 10 mil a R$ 12 mil por mês, sem contar os [gastos com] funcionários. Sem isso a gente vai ter que fechar”, alertou Merced.
Ela lembra que, desde a descoberta do sítio arqueológico, o trabalho de preservação da memória e herança africana dependeu de seus próprios esforços e do empenho da família e de amigos, já que o cemitério foi descoberto sob a casa dela, em uma obra iniciada em 1996.
“O que nos motivou foi o descaso. A gente encontra um cemitério, fica sabendo que era um cemitério de escravos, avisa a prefeitura. O pessoal veio, explicou que o cemitério estava perdido e era muito importante. Fizeram o recolhimento dos ossos e entulhos, proibiram a gente de continuar a obra, mas ficaram três anos sem fazer nada. A gente teve que sair da casa, pois estava começando a ceder por causa dos buracos nos alicerces”, lembrou.
Em 2001, a família de Merced retornou para a casa e a história veio a público após o interesse do Arquivo Público da cidade e da realização do seminário Rota da Escravidão. “A gente descobriu todo um complexo que era o grande mercado de cativos africanos, que foi o maior do mundo e estava soterrado, como o cemitério e o Cais do Valongo”, disse.
Segundo ela, voltou a ser esquecida e, em 2003, um grupo de estudantes se interessou pelo cemitério e fez o primeiro site. “Essa história é difícil, não tem nos livros. Nasce o site em 2003, que começa a divulgar essa história. Em 2005, a nossa casa começa a virar museu, com as pessoas batendo na porta para conhecer. Em 13 de maio, um grupo de amigos veio com uma ata e fundamos o Instituto Pretos Novos, para que essa história não fosse esquecida. É uma responsabilidade muito grande”, destacou.
Os registros oficiais do Livro de Óbitos da Freguesia de Santa Rita, onde funcionou o primeiro cemitério para africanos recém-chegados, indicam o sepultamento de 6.122 pretos novos no local, entre os anos de 1824 e 1830. Porém, a estimativa dos pesquisadores é de que o cemitério abrigue mais de 30 mil corpos de pessoas descartadas junto a restos de alimentos e utensílios domésticos quebrados.
Muitas vezes os corpos eram queimados e quebrados antes de serem jogados em várias camadas de valas comuns. O espaço do cemitério tem apenas 110 metros de largura e começou a funcionar em 1769 e foi soterrado a partir de 1830. O local foi descoberto 166 anos depois.
Ao longo dos anos de funcionamento do IPN, Merced explica que recebeu recursos do programa Ponto de Cultura, do governo federal, entre 2010 e 2012, e da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto (Cdurp), da prefeitura, entre 2013 e 2016. Desde então, não há ajuda governamental.
Cais do Valongo
Especializado em história da África, o professor Flávio Henrique Cardoso explica que chegaram ao Brasil cerca de cinco milhões de pessoas traficadas no período da escravidão. Segundo ele, seis milhões saíram da África em direção ao Brasil, mas 1 milhão de pessoas morreram durante a travessia e tiveram os corpos atirados ao mar.
O professor destaca que o Cais do Valongo é o “epicentro” dos estudos e da memória da escravidão no Brasil e no mundo. O cais foi descoberto em 2011, durante as escavações para as obras de revitalização da região portuária.
“É o lugar mais importante, é um patrimônio da humanidade, título que ganhou em 2017. Ali desembarcaram quase dois milhões de africanos. É um lugar extremamente importante da história da África e do comércio transatlântico. O Rio de Janeiro foi o maior porto escravista da humanidade”, explicou o professor.
Cardoso lembrou que, desde que o Cais do Valongo recebeu o título de Patrimônio da Humanidade, em julho de 2017, passou por dois alagamentos. “Estavam paralisadas as obras de manutenção por falta de dinheiro. E quando inunda você pode perder coisas. A Unesco deu uma bronca e fomos ameaçados de perder o título. Aí apareceu o dinheiro da embaixada americana. Agora, muito lentamente, está acontecendo a obra”, acrescentou.
Segundo a prefeitura do Rio de Janeiro, em setembro deste ano foram destinados R$ 2,1 milhões para a segunda fase das obras de revitalização. O dinheiro foi doado pelo State Grid Brazil Holding (SGBH). Em novembro de 2018, a Missão Diplomática dos Estados Unidos doou US$ 500 mil, que financiaram a primeira parte da revitalização, com a consolidação do Cais para tornar o sítio estável e seguro, além de recolocação e fixação de placas soltas.
De acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que coordena o trabalho de revitalização do Cais do Valongo, a construção da mureta será concluída até o final do ano, com a impermeabilização e o acabamento em granito. Em 2020, o sítio arqueológico ganhará módulos expositivos com a história da região, além de um guarda-corpo, iluminação cênica monumental, sinalização direcional, sistema de segurança por câmeras, projeto educativo e ações de comunicação.
Pedra do Sal
Completando as três principais atrações da Pequena África, ao lado do Cais do Valongo e do Cemitério dos Pretos Novos, está a Pedra do Sal. O professor Flávio Henrique Cardoso explicou que a grande pedra separava o Rio de Janeiro em dois, deixando a parte destinada à chegada, engorda e comércio dos negros longe das vistas da população. Só saía do vale quem era vendido como escravo. Os mortos eram enterrados ali mesmo.
De acordo com o professor, a Pedra do Sal era um lugar de louvação a céu aberto, assim como ocorre atualmente, além de servir como ponto de reuniões culturais. Foi neste local que nasceu o samba na casa de João da Baiana, que hoje dá nome ao pequeno largo em frente à pedra na Rua Argemiro Bulcão. O sambista recebia amigos como Heitor dos Prazeres, Sinhô, Donga e Pixinguinha. Hoje, o lugar é ocupado por uma roda de samba nas segundas e nas sextas-feiras e também dá espaços a outros eventos culturais.
“O mar chegava ali, era um grande mirante onde as mães de santo faziam as suas oferendas. É um grande altar ao ar livre, além de ser o local da música, o berço do samba, onde os ranchos e cordões iam se encontrar para depois desfilar. Tia Ciata morou ali por um tempo, as pessoas iam pedir a bênção para as mães de santo antes dos cordões saírem. Ali que os estivadores do século 19 se encontravam para fazer suas grandes festas e reuniões”, contou Cardoso.
Este mesmo espaço está agora interditado devido à queda de um beiral da fachada lateral do prédio de 12 andares construído ao lado da Pedra do Sal, depois das fortes chuvas que caíram na segunda-feira passada (11). Segundo a Subsecretaria de Proteção e Defesa Civil, vinculada à Secretaria Municipal de Ordem Pública (Seop), o isolamento ocorreu por motivos de segurança.
Para o professor Cardoso, além do apoio financeiro, o circuito da Pequena África precisa de atenção da sociedade civil e dos governos. “É um envolvimento da comunidade, um movimento que tem que ter no Brasil todo e no mundo, de não esperarmos e dependermos do governo. Tem que ser um movimento espontâneo da população de conhecermos o local, entendermos o problema e ajudarmos como cada um pode”, alertou.
O Circuito Histórico e Arqueológico da Herança Africana foi criado pela prefeitura em novembro de 2011, pelo Decreto Municipal nº 34.803, para “construir coletivamente políticas de valorização da memória e proteção deste patrimônio cultural”, segundo o site da Riotur.