Em 2012, aos 33 anos, o ala-pivô Felipe Ribeiro resolveu se arriscar. Deixou o estado de São Paulo e embarcou em um novo projeto, o Basquete Cearense, em Fortaleza, o primeiro time do Nordeste a participar do NBB. Pela primeira vez ele iria atuar fora da região onde fez carreira e, até mesmo pela idade, poderia se supor que essa seria uma última parada, um último desafio antes da aposentadoria. Ao chegar, Felipe viu que havia muito trabalho a ser feito. Encontrar no Ceará os profissionais necessários para formar uma equipe foi uma tarefa dura. O projeto começou com a maior parte do pessoal vindo de outros estados, principalmente do Sul e Sudeste. Não seria absurdo encarar a jornada com algum grau de pessimismo. Hoje, é possível dizer que a ida para o Nordeste foi um ponto de inflexão na carreira e na vida do jogador. Oito anos depois, ele ainda defende o Basquete Cearense e foi assim durante quase o tempo todo – a única exceção sendo uma breve passagem de uma temporada pelo Pinheiros. Felipe é ídolo da torcida do ‘Carcará’, como é conhecido o clube e escreveu até um livro infantil inspirado nas experiências que viveu na cidade. Nascido em Santa Rita do Sapucaí, Minas Gerais, ele se considera 50% cearense. Felipe e o Basquete Cearense, inadvertidamente ou não, são exemplos do que é o basquete no Nordeste: um território com muito a ser explorado e cujos principais exemplos de sucesso vêm justamente de quem topou sair da zona de conforto, como ele.
“Não foi fácil fazer basquete fora do eixo São Paulo. O ginásio era novo, a torcida era nova, nós tivemos que conquistar esse torcedor. Mas hoje o presidente é cearense, o técnico é cearense. Isso mostra tudo que foi feito nesse tempo”, opina Felipe.
Fazer basquete no Nordeste continua não sendo fácil. No NBB, em doze edições, foram apenas três equipes da região participando: o próprio Basquete Cearense, o Vitória – que disputou três temporadas seguidas de 2015 a 2018 – e o Unifacisa, da Paraíba, que está estreando em 2019-2020. Não há rebaixamento na atual temporada do NBB, mas o número de equipes nordestinas também não vai crescer, porque o Campeonato Brasileiro, a nova divisão de acesso para a liga, não vai contar com nenhum time da região. Já na LBF, que chega à décima edição, o campeão vigente é do Nordeste, o Sampaio Correa, do Maranhão, dono de dois títulos. Em 2013, o Sport Recife também se sagrou campeão. No entanto, na recém-anunciada lista de clubes da temporada de 2020, que começa no dia 8 de março, há apenas um clube do Nordeste, justamente o Sampaio.
A equipe de São Luís chega à quinta participação na LBF como favorita ao título. Terá no elenco a base da seleção brasileira, com jogadoras como Tainá, Rapha Monteiro, Isabela Ramona e a recém-contratada Érika. Embora o time carregue no nome a história do tradicional clube de futebol, a trajetória no basquete é bem recente, iniciada em 2015, e também é marcada por uma dose de arrojamento. Murilo Dias, fundador do projeto e vice-presidente do Sampaio Correa Futebol Clube, era fisioterapeuta no antigo Maranhão Basquete. Ele atribui à ex-jogadora Iziane, que é maranhense, o pontapé inicial para o basquete local. Quando o projeto inicial do Maranhão, de Iziane, começou a encontrar problemas, Murilo pensou em apresentar a ideia de levar o basquete ao Sampaio. Devidamente aprovada, a intenção logo se transformou em realidade, colhendo frutos quase que imediatamente.
“Há várias razões para o nosso sucesso. O comprotimento de toda a nossa equipe. A estrutura, que não vou dizer que é a melhor do Brasil, mas é muito boa. Além disso, conseguimos criar uma identidade das atletas com o clube. Várias delas já estão na terceira temporada com a gente. O Sampaio é um exemplo do potencial que o Nordeste tem no basquete”, diz Murilo.
Para o dirigente, ainda há obstáculos nessa estrada para um Nordeste mais forte no basquete. Murilo Dias aponta a falta de um calendário repleto de competições como um problema. A equipe basicamente fica seis meses sem atuar entre o fim de uma temporada da LBF e a outra. Em termos financeiros, ele destaca o apoio do governo local à iniciativa, mas se ressente de um maior suporte do setor privado a clubes do Nordeste no geral. A reclamação é exatamente oposta à feita pelo responsável pelo projeto do Unifacisa, de Campina Grande. Diego Gadelha gostaria de ver o basquete paraibano tendo mais incentivos de verbas públicas. Mesmo assim, a ascensão da equipe desde que o projeto foi criado, em 2012, é notória. O time foi campeão estadual já no ano seguinte. Na segunda participação na Liga Ouro, a antiga divisão de acesso do basquete masculino brasileiro, foi campeão dentro do ginásio do São Paulo. E na estreia no NBB, faz boa campanha (sétimo colocado).
O caso do Unifacisa é o mais curioso de todos. A universidade existe desde 1999. Diego, que é oftalmologista e diretor da área de saúde da entidade, viajou para os Estados Unidos para fazer um aperfeiçoamento, frequentando a universidade de Harvard, em Boston e também o TD Garden, ginásio do Boston Celtics, equipe da NBA. Ele retornou encantado com a proposta americana de desenvolver o esporte nas universidades. O que começou como uma ideia de estimular a atividade esportiva entre os alunos acabou se tornando um clube empresa que tem o basquete como carro-chefe. Toda a estrutura acadêmica está à disposição dos atletas. Se nos Estados Unidos é exigido que os atletas-alunos sejam amadores, no Unifacisa a inspiração é amadora, mas na prática a gestão é de um clube profissional, que contrata os atletas – embora existam jogadores no plantel da equipe que também estudam na universidade. Alguns dos nomes contratados vieram justamente dos Estados Unidos, caso do armador Nate Barnes. Defender o Unifacisa, para ele, é um retorno aos tempos da universidade em que estudou e atuou, Alderson Broaddus, no estado de West Virginia.
“Realmente tem coisas que eu vivi tanto no college como aqui. Uma das principais são os torcedores e a atmosfera nos jogos. Eles ficam concentrados, participam muito, gritando e incentivando. Além disso, quando ando pelas ruas sempre me perguntam quando vamos jogar de novo ou dão os parabéns pela última vitória. Era exatamente assim quando eu andava pelo campus”, relembra.
Falando em torcida, esse é um ponto em que TODAS as pessoas entrevistadas concordaram. No Nordeste, há algo de especial.
“O nordestino tem muito essa coisa do orgulho das coisas que dão certo. Aqui em Campina Grande, enchemos a boca para dizer que o nosso é o maior festival de São João do mundo. Quando temos um time vencedor como esse, mexe com a autoestima do povo”, diz Diego Gadelha.
O acanhado ginásio do Unifacisa, com capacidade para aproximadamente 1.300 pessoas, não pode comportar grandes públicos, mas consegue empregar uma grande pressão nos adversários. A equipe tem o quarto melhor aproveitamento como mandante no NBB (9 vitórias, 4 derrotas). No caso do Basquete Cearense, que joga no Centro de Formação Olímpica do Nordeste, onde cabem 21 mil pessoas, boas fases ou adversários emblemáticos podem encher o ginásio, que já chegou a receber mais de 10 mil pessoas em jogos do Carcará. No atual NBB, a equipe é a penúltima colocada, mas o apoio do torcedor nordestino não foi embora.
“Nunca fomos vaiados. Nossa torcida é apaixonada, mas também sabe que não temos o mesmo budget dos times de São Paulo, por exemplo. O povo nordestino é maravilhoso e como aqui tudo começou do zero, eles realmente compraram a ideia de que viemos para representá-los”, acredita Felipe Ribeiro.
No Sampaio não é diferente. O presidente Murilo Dias lembra de finais em que o ginásio do Castelinho, em São Luís, chegou a receber oito mil pessoas. A ala-armadora Tainá Paixão, que vai para a terceira temporada defendendo a ‘Bolívia Querida’ coloca o calor humano do torcedor local como uma das razões para que ela e outras atletas queiram jogar no Sampaio – e não sair depois. Tainá nasceu, cresceu e jogou no estado de São Paulo, mas o que ela vê no Nordeste é totalmente diferente.
“Não que os paulistas não gostem de basquete, mas aqui eles têm um calor diferente, no sentido de acolher mesmo. E isso faz diferença. O pessoal do futebol vibra com a gente, lota os ginásios, para mim isso influencia bastante (a escolha)”, diz Tainá.
Érika concorda.
“Só na Espanha eu vi uma torcida tão apaixonada como a do Sampaio. E eu me identifico muito com essas torcidas. Adoro trazer a minha a torcida pra dentro da quadra comigo”, revela.
No basquete feminino, a torcida já carregou times até o título brasileiro. Mas no masculino, isso nunca aconteceu. O que será que falta? No caso do Unifacisa, não é ambição nem investimento.
“A gente deve estar entre o oitavo e o décimo maior orçamentos do NBB. Mais até do que algumas equipes tradicionais. E com relação a ser o melhor do país, não trabalhamos com metas que não sejam assim. Não nos vejo passando dez anos sem ser campeão do NBB. Ou o projeto acaba antes ou vamos ser campeões”, aposta Diego Gadelha.
No momento, parece difícil. Mas nessa longa jornada, mesmo que os passos pareçam de formiga às vezes, o destino pode não ser tão inalcançável. Talvez não haja pessoa mais credenciada para opinar sobre isso do que o Felipe Ribeiro.
“Não acho que seja algo de outro mundo. Teria que ter investimento equiparado a Franca, Flamengo e os outros. Mas eu vejo a gente conseguindo ir para uma final, colocando 18 mil pessoas no ginásio. E aí tudo é possível. No esporte, céu e inferno estão muito próximos. Se estiver bem apoiado, eu acredito.”