Cotidiano

Indústria de cigarros terá que indenizar viúva após morte por tabagismo

Desembargadores da 9ª Câmara Cível do TJ-RS (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul) condenaram a indústria de cigarros Souza Cruz. O motivo foi a morte de um homem por doença pulmonar decorrente do uso de cigarro. A empresa terá que indenizar a viúva da vítima.

A autora da ação judicial pediu indenização por danos morais. Ela alegou que o marido dela, morto em 2010, foi consumidor, por mais de 30 anos, dos cigarros produzidos pela Souza Cruz. Em 2005, a mulher disse que o marido ajuizou ação cautelar de produção antecipada de provas em razão do estado debilitado de saúde em que se encontrava, sendo reconhecido por perícia a relação entre a doença e o tabagismo.

A mulher afirmou que os danos causados pelo cigarro foram progredindo silenciosamente. Conforme ela, quando detectada a causa dos problemas de saúde, já não havia possibilidade de reversão do quadro. Ela argumentou que o marido, assim como grande parte da população, possuía pouca instrução, não compreendendo os riscos que o tabagismo pode causar à saúde. Ainda argumentou que as restrições e obrigações impostas pela Lei 9.294/1996 chegaram tarde demais.

A viúva citou que o marido não respirava mais voluntariamente, só com ajuda de oxigênio e não se deslocava sozinho. Ela sustentou que o constrangimento sofrido, tanto pelo seu marido quanto por ela e sua família são evidentes, e que a Souza Cruz é responsável pela prática de ato ilícito. “Seja consubstanciado na composição nociva da fórmula do produto, seja pelo defeito de informações quanto à nocividade e dependência”, aponta. A mulher pediu indenização em valor não inferior a 3.200 salários mínimos.

Defesa da empresa

A Souza Cruz S/A contestou a ação judicial alegando prescrição. A empresa disse que não há “defeito no produto”, a periculosidade inerente do cigarro. A Souza Cruz também aponta ausência de defeito de informação, diante do amplo e antigo conhecimento público de que fumar está associado a riscos.

A indústria de cigarros também citou os princípios da legalidade, irretroatividade e segurança jurídica. Outros argumentos citados foram a inexistência de violação ao princípio da boa-fé objetiva e da inexistência de publicidade enganosa ou abusiva. Entre as citações da defesa, ainda estão o livre arbítrio do fumante, a configuração da culpa exclusiva do consumidor, excludente de responsabilidade civil e a ausência de nexo causal entre o alegado consumo de cigarros da marca Souza Cruz e a doença da vítima.

O pedido foi julgado improcedente em primeira instância. A autora da ação apelou ao Tribunal de Justiça, argumentando que a documentação prova a relação da doença e o uso continuado de cigarro.

A mulher afirmou que quando o marido começou a fumar, os malefícios e a dependência provocados pelo consumo de cigarros eram desconhecidos. Ele teria adquirido o hábito de fumar influenciado por propaganda enganosa. Antigamente as empresas faziam peças incentivando o consumo do produto e o associando à ideia de sucesso pessoal e à vida saudável dos praticantes de esportes.

Voto do desembargador

O relator do acórdão, desembargador Eugênio Facchini Neto, disse tratar-se de um tema complexo, cuja matéria não se encontra pacificada nos tribunais brasileiros. Embora nos últimos anos, segundo o jurista, tenha prevalecido a tese da irresponsabilidade da indústria do fumo pelos danos causados por seu produto.

“Todavia, não havendo entendimento sumulado a respeito, nem tampouco julgamento pelo rito dos recursos repetitivos, resta preservada a independência da convicção do julgador para apreciar o feito.” A partir desta introdução, o desembargador iniciou seu voto por confirmar a pretensão da autora.

Já no início da decisão, o desembargador citou a certidão de óbito da vítima, que aponta a causa da morte: “Insuficiência ventilatória. Doença pulmonar obstrutiva crônica. Tabagismo.” Os atestados médicos também comprovaram que o marido da mulher tratava a doença pulmonar desde 1998 e que ele fumava 20 cigarros por dia, dos 20 aos 54 anos. E que desde 2002 se tratava com oxigenioterapia domiciliar.

O magistrado ainda lembrou que na ação movida pelo próprio marido da autora, cinco anos antes de morrer, a perícia médica judicial já apontava que ele era portador de doença bronco-pulmonar obstrutiva crônica grave, doença decorrente do tabagismo em 70% a 80% dos casos, conforme literatura médica.

Em sua decisão, o desembargador fez uma longa reflexão sobre os elementos que envolvem esta questão, da responsabilidade civil da indústria do fumo. Ele também fez uma relação entre os argumentos de que as indústrias do fumo pagam muitos tributos, desempenhando importante papel na economia, com os custos causados à Previdência Social, em razão de tratamentos de doenças relacionadas ao fumo. Valores, segundo dados apresentados, que superariam o valor desse ingresso com impostos.

O desembargador discorreu sobre as descobertas científicas relativas aos efeitos do tabagismo e que, a partir da divulgação das comprovações, as pessoas começaram a se conscientizar de que as doenças que desenvolveram estavam relacionadas ao vício do tabagismo e que lhes fora negada a informação disponível a respeito. Quando isso aconteceu, ações judiciais foram ajuizadas desde a década de 1950, nos Estados Unidos.

Entretanto, o desembargador trouxe informações de que só em 1994 as vítimas começaram a ganhar as ações judiciais contra as indústrias. Foi quando, além das comprovações científicas de que o cigarro causa danos à saúde, veio à tona que a indústria tinha conhecimento disto, mas que havia tentado, durante décadas ocultar tais fatos.

Comentários do desembargador sobre a defesa da empresa

Na sequência de seu voto, ele passou a detalhar os argumentos trazidos pela defesa da indústria do fumo. Sobre o nexo de causalidade, o magistrado citou as conclusões da ciência médica, que demonstram que determinadas doenças, em especial as pulmonares, estão necessariamente vinculadas ao vício do fumo num percentual entre 80% e 90%. Ele discorreu que essa diferença percentual serviu como justificativa para que, por muitos anos, as indústrias não fossem punidas.

“Para se evitar que a indústria do fumo seja injustamente condenada num percentual de 10% a 20% das causas, prefere-se, assim, injustamente desacolher as justas pretensões de 80% a 90% dos autores. A fragmentação dos litígios, portanto, favorece amplamente a indústria do fumo. Contra esse absurdo lógico e de intuitiva injustiça não se pode concordar”, argumentou o desembargador.

Sobre a produção e prova inequívoca do nexo de causalidade entre o consumo de tabaco e as doenças tabaco-relacionadas, argumento usado pela defesa das indústrias, o magistrado esclareceu que “o nosso sistema probatório não exige uma prova uníssona e indiscutível, mas sim uma prova que possa convencer o juiz, dentro do princípio da persuasão racional”.

Ele também disse que por se tratar de relação de consumo, o consumidor tem o direito básico de ver facilitada a prova do seu direito. “Caberia, assim, ao réu, fornecedor do produto, o ônus da prova em contrário.” O magistrado citou a existência de teorias, doutrinas e práticas jurisprudenciais em que há a troca da verdade pela verossimilhança e da certeza pela probabilidade, no intuito de se fazer justiça. E discorreu sobre elas.

Quanto ao segundo argumento usado pela defesa da indústria do fumo, o do livre-arbítrio, não se sustenta neste caso, na opinião do magistrado. Ele disse que quase a totalidade dos fumantes começa a fumar quando jovens, quando o suposto livre arbítrio da pessoa está em formação e, portanto, não pode ser levado a sério. “Assim, considerar livre-arbítrio a opção de fumar ou não para um jovem entre 12 e 18 anos, exposto à intensa publicidade do cigarro, vale tanto quanto considerar livre o consumidor que firma um contrato eivado de cláusulas abusivas porque, afinal de contas, havia a opção de não contratar.”

Nessa lógica, o desembargador apresentou os efeitos da publicidade sobre o processo de tomada de decisão e os vários anos em que a publicidade do tabaco era intensa e sem controle. O magistrado concluiu que “a indústria do fumo de forma deliberada e consciente usou de todos os recursos psicológicos disponíveis para ‘vender’ seu produto, buscando quebrar as barreiras de uma saudável liberdade de escolha, neutralizando informações de que tal produto seria maléfico e fornecendo falsas muletas para neutralizar os alertas cada vez mais abundantes e inequívocos provindos do meio científico”.

Para ele, quanto mais velha a pessoa, mais difícil largar o vício, devido aos efeitos de dependência causados pela nicotina. “E aqui, novamente, falar-se em livre-arbítrio é olimpicamente desconhecer a realidade dos fatos”, afirmou o Desembargador Eugênio Facchini Neto. “Não se pode olvidar, tampouco, que o exercício do livre-arbítrio supõe consciência. Consciência pressupõe informações suficientes, claras, adequadas e sem falsificações das opções existentes e de suas consequências.”

O magistrado disse que as informações repassadas pela indústria são insuficientes e inadequadas para o completo esclarecimento do consumidor, visto que novas pesquisas ainda revelam malefícios atrelados ao tabagismo, até então desconhecidos. Ele ainda ressaltou que os fabricantes de cigarro somente passaram a advertir acerca dos danos causados à saúde nos maços de cigarro em razão de determinação legal, jamais de forma espontânea e leal com seus consumidores. “Além disso, ao adicionarem substâncias aditivas nos cigarros, aniquilam o livre-arbítrio do indivíduo, o que neutraliza as instruções, aconselhamentos ou advertências.”

O desembargador abordou uma das linhas defensivas comumente invocadas pela indústria do fumo, a de que o cigarro não seria produto ‘defeituoso’, nos termos do Código de Defesa do Consumidor, pois se trata de periculosidade inerente e, portanto, os riscos seriam considerados normais à sua natureza e previsíveis. Não haveria defeito de concepção, de fabricação, nem de informação.

Porém, o magistrado sustentou que é incidência do CDC (Código de Defesa do Consumidor) ser verifica pela omissão de informação adequada e clara sobre suas características, composição e riscos; pela publicidade insidiosa e hipócrita, adotada por décadas, vinculando o cigarro a situações como sucesso profissional, beleza, prazer e requinte e pela introdução de nicotina no cigarro, substância aditiva que faz o usuário usar mais o produto, não por uma escolha consciente, mas sim em razão de necessidade química.

Ele acrescentou que, mesmo que fosse descartada a aplicação do Código de Defesa do Consumidor e se aplicasse apenas a legislação civil, ainda haveria obrigação de reparar o dano. O desembargador também refutou o argumento da defesa de que não se poderia aplicar o Código de Defesa do Consumidor para fatos ocorridos em décadas anteriores. Segundo ele, o CDC se aplica em relações duradouras iniciadas anteriormente, mas que persistem durante a vigência do Código.

O magistrado trouxe em seu voto também trechos de textos extraídos do site da Souza Cruz, onde a empresa reconhece os males associados ao consumo do cigarro e afirma que “a única forma de evitar os riscos do cigarro é não fumar”, o que, na opinião do relator, confirma que não há níveis seguros de consumo do fumo. Para ele, a prova documental apresentada na ação, como atestado de óbito, atestado da médica que tratava do marido da autora, bem como o laudo pericial realizado de forma antecipada, são suficientes para condenar a empresa.

Indenização

O desembargador reconheceu a culpa concorrente do marido da autora, já que para ele, “fumar não era um destino inevitável. Houve uma parcela, embora pequena, de adesão a esse letal estilo de vida”. Diante disso, o magistrado decidiu reduzir em 25% o valor da indenização.

O fato de não haver uma prova absolutamente categórica e indiscutível sobre a origem da doença que levou o marido da autora à morte, também foi motivo para redução do valor em 15%. Para o magistrado, essa diminuição é “para que esse valor reflita o grau de probabilidade da contribuição causal do tabagismo”.

Baseado em estudos e publicações científicas, o magistrado afirmou que é possível atribuir um percentual de 85% de probabilidade de que a doença que acometeu a vítima tivesse origem no fato de que fumou durante 34 anos de sua vida. Ele também considerou a impossibilidade de identificar precisamente a ou as marcas que o marido da autora fumou ao longo de sua vida. A Souza Cruz foi a maior, mas não a única fabricante de cigarros ao alcance da vítima.

Diante disso, o magistrado considerou a média de participação da empresa no mercado de cigarros comuns no Rio Grande do Sul ao longo do período em que ele fumou (de 1964 a 1998). A apuração desse percentual será efetuada na liquidação de sentença, após eventual trânsito em julgado da decisão condenatória.

Assim, ele fixou o valor da indenização em R$ 1 milhão. Porém, considerando a ausência de absoluta certeza quanto ao nexo de causalidade (redução de 15%) e a culpa concorrente do marido da autora (redução de 25%), a empresa terá que pagar 75% do valor determinado: R$ 637.500,00.

A terceira redução determinada pelo magistrado só será calculada no momento da liquidação de sentença. Os Desembargadores Caros Eduardo Richinitti e Eduardo Kraemer, da 9ª Câmara Cível, acompanharam o voto do relato. Cabe recurso da decisão.