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Trabalhadores denunciam negligência da Prefeitura em abrigos de Porto Alegre

Reportagem do Agora RS conversou com trabalhadores da rede de assistência, que revelam irregularidades, negligências e más condições de abrigo para vulneráveis

Foto: Leonardo Severo/Agora RS
Foto: Leonardo Severo/Agora RS

Uma tragédia anunciada: é assim que duas pessoas ouvidas pelo Agora RS classificam o incêndio que causou a morte de 10 pessoas em Porto Alegre nesta sexta-feira (26). O fogo que destruiu a Pousada Garoa é apenas a parte tangível de uma espiral de negligências e descaso de agentes públicos que deveriam zelar pelos necessitados.

Por temerem represálias, as duas pessoas ouvidas pela reportagem decidiram não se identificar. Uma delas trabalha na rede de atendimento da população vulnerável. A outra teve experiência pelo setor como terceirizado.

Elas relataram o desafio amparar a parcela vulnerável da população e como presenciaram a situação de pessoas submetidas a todo tipo de violência, acidentes e negligências.

De acordo com as duas fontes, as equipes de atendimento são mal preparadas e ou sem formação. A culpa pelos problemas, no entanto, recai apenas sobre o usuário, sem que haja sensibilidade ao seu contexto de vulnerabilidade social.

Mais: as pessoas trabalham sabendo da precariedade dos locais de abrigo. E grande parte sabia, infelizmente, que uma tragédia como a da Pousada Garoa da avenida Farrapos era questão de tempo. “Os usuários em atendimento dizem estar mais seguros em situação de rua do que nesses espaços”, aponta um dos entrevistados.

O caso da Pousada Garoa

No caso da Pousada Garoa, mas não só, conforme um dos relatos, as condições gerais eram péssimas. Os abrigados enfrentavam, por exemplo, falta de água e de energia elétrica por falta de pagamento. Casos de violência contra a mulher “eram frequentes”, segundo a fonte. “Os moradores ficam suscetíveis a todo tipo de violência e perigo constantemente”, destaca o outro entrevistado.

A filial Garoa da avenida Farrapos funcionava por convênio com a Prefeitura. Os serviços operavam por encaminhamento de serviços da rede de assistência e saúde mental de seus acompanhados, através de vouchers. Um dos entrevistados, diz que, enquanto funcionário terceirizado da Prefeitura, apresentou denúncias dos usuários e as suas sobre os riscos do local.

“Foram enviados fotos e vídeos da precariedade da rede elétrica e dos quartos para a coordenação de Creas [Centros de Referência Especializado de Assistência Social] Centro, para supervisão da PSE (Proteção Social Especial) e para coordenação da PSE, que era responsável por fiscalizar o convênio da Garoa com a Prefeitura. As condições eram péssimas, faltava água e energia elétrica, por falta de pagamento. Situações de violência contra a mulher eram frequentes, todas sendo retratadas para as instâncias superiores, inclusive a coordenação do serviço de abordagem social ao qual eu trabalhava”

Trabalhador que teve experiência pela rede

Lógica da terceirização

Para um dos entrevistados, este princípio de terceirização está intimamente ligado aos problemas que surgem nesses atendimentos.

Aliena-se a responsabilidade por vidas e cuidado com estas, a uma lógica de lucro fácil e sem regulação.

Entrevistado que trabalha na rede

Contudo, para o entrevistado que já não integra os atendimentos, este pensamento não explica tudo. Para ele, a terceirização tem seus erros, como o péssimo preparo dos funcionários (ou até a falta dele), mas o problema maior é a falta de ação de quem deveria fiscalizar.

Essa tragédia anunciada, em específico, quem era responsável por fiscalizar o convênio com a pousada e acompanhar como as terceirizadas atendiam essas pessoas são todas do quadro da FASC [Fundação de Assistência Social], coordenação de Creas, supervisão e coordenação da PSE. Essa responsabilidade não cabe aos terceirizados. Essas pessoas ou as coordenações dos serviços de abordagem social, que são terceirizados, tinham a obrigação de denunciar essas violações de contrato e do direito dos usuários ao MP [Ministério Público], mas não o fizeram.

Relato do ex-terceirizado

Falta de fiscalização

Ambos os entrevistados destacam que a falta de fiscalização e descaso do governo municipal é “recorrente”. Ainda em 2022, houve um incêndio em uma pousada do mesmo grupo e “parceirização” que ocasionou a morte de uma pessoa e deixou 11 feridos, destaca o trabalhador.

“Isso é comum, apesar das frequentes visitas da coordenação da PSE no local, inclusive com bombeiros, nunca foi nem notificada, nem multada e nem lacrado o prédio. Sofríamos pressão das coordenações das equipes terceirizadas para seguir incluindo moradores em voucher. Pessoas em situação de vulnerabilidade tendem a se desorganizar, lugares com paredes espremidas e de madeira, com fiação elétrica à vista, com botijão de gás em péssimas condições. Se foi por algum incidente ou não, o espaço não permitia que houvesse possibilidade de se lidar com qualquer acidente”.

Relato do ex-terceirizado sobre as condições de abrigamento

Secretário nega irregularidades após incêndio

Em entrevista concedida aos veículos de imprensa pela manhã, o secretário do Desenvolvimento Social e coordenador da Política de População de Rua da Prefeitura de Porto Alegre, Léo Voigt, apontou que a pousada que pegou fogo “não tinha irregularidades”. De acordo com ele, a empresa contemplou o que o edital de contratação exigia.

“É uma tragédia para todo mundo, […] mas também é uma tragédia para todos os serviços de proteção, porque a nossa missão é cuidar e proteger as pessoas”, afirmou. Quando questionado sobre a situação do contrato, Voigt foi taxativo. “Plenamente regular, segundo a legislação. Alvará, PPCI, tudo regular, entregue na documentação [usada para celebrar o contrato]”, conclui.

No entanto, segundo os Bombeiros, o local não tinha alvará para funcionamento e nem PPCI (Plano de Proteção e Combate a Incêndio) válido. “Em 2019, houve uma aprovação de projeto para utilização como escritórios, cabendo ao proprietário, à época, executar as medidas de proteção contra incêndio e solicitar a vistoria ao CBM, o que não foi feito. O Corpo de Bombeiros Militar destaca que toda e qualquer alteração de finalidade do imóvel requer o protocolo de um novo PPCI para que seja analisado. Enquanto não for feito, o empreendimento encontra-se em condição irregular”, diz nota do CBMRS.

Número de feridos sobe para 15

De acordo com o novo balanço da Prefeitura de Porto Alegre, 15 pessoas feridas chegaram a ser encaminhadas para atendimento hospitalar via SUS. Deste número, duas seguiam em estado grave e sete foram liberadas ao longo da sexta-feira. Outras cinco estavam ainda em atendimento no HPS (Hospital de Pronto-Socorro) ou no HCR (Hospital Cristo Redentor), mas sem risco de morte. Além disso, um ferido foi encaminhado para atendimento no Hospital Santa Ana.

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