O trabalho científico constantemente envolve a revisão de achados de pesquisa, inclusive as conclusões de outros pesquisadores, especialmente tendo disponíveis técnicas e ferramentas de investigação mais modernas.
Algumas áreas, como a paleontologia, são mais propensas a este tipo de trabalho, uma vez que novos achados fósseis com certa frequência atualizam evidências já atribuídas a materiais encontrados anteriormente. É o percurso natural do fazer científico.
Um estudo recente publicado por uma equipe da Ufrgs (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e da Furg (Universidade Federal do Rio Grande) analisou evidências fósseis descritas anteriormente como sendo de um animal mamífero encontradas na laje de uma calçada da cidade de Santa Cruz do Sul, no Vale do Rio Pardo, em 1983.
O novo estudo questiona se pegadas são realmente de mamíferos, se a laje de arenito onde as pegadas estão é realmente da Formação Botucatu (e, por consequência se ela tem a idade cretácea) e se, de fato, ela é de Santa Cruz do Sul.
Análises morfológicas em primeira mão e com base em fotogrametria (uma técnica moderna de análise) apontam que o animal que ali caminhou não pode ser determinado. Com base em informações oriundas de uma revisão bibliográfica, também são questionadas a procedência e a idade do material.
Assinam o estudo publicado Revista Brasileira de Paleontologia, os pesquisadores Heitor Francischini, Gabriel Sipp, André Barcelos-Silveira, Cesar Schultz e Paula Dentzien-Dias.
A pesquisa reinterpreta, à luz evidências recentes, os achados da década de 1980, atualmente depositados no Museu de Paleontologia da Ufrgs Irajá Damiani Pinto. Ele fica localizado na Avenida Bento Gonçalves, 9500, em Porto Alegre.
Entendendo o histórico dos achados
Algumas das evidências de espécies mais comuns de pegadas de mamíferos fossilizadas são as atribuídas a Brasilichnium. São comuns a ponto de serem identificadas na literatura científica três diferentes espécies: B. elusivum, B. saltatorium e B. anaiti.
A Brasilichnium elusivum foi descrita pela primeira vez em 1981 pelo missionário e paleontólogo italiano Giuseppe Leonardi. As evidências fósseis para esse gênero – dezenas de pegadas encontradas em diferentes locais – são abundantes na Formação Geológica Botucatu, da Bacia do Paraná, a despeito de ainda não se terem encontrado fósseis do animal produtor das pegadas nesta região.
Conforme as análises anteriores corroboram, o animal que deixou as pegadas do tipo Brasilichnium teria vivido na Era Mesozóica (que durou entre 248 milhões a 65 milhões de anos), especificamente no começo do Período Cretáceo (aproximadamente 135 milhões anos).
O material foi estudado em 1983 por Leonardi e pelo pesquisador William Sarjeant. Até hoje, esse é o achado mais ao Sul relacionado ao animal, o que os autores do estudo refutam na nova análise.
Entre os registros mesozóicos, a situação do Brasilichnium seria um caso interessante de rastros produzidos por um animal que evidências paleoambientais correspondentes indicam ter vivido no deserto, sendo também relacionadas a um dos mais antigos indícios de animais que caminhavam de maneira assimétrica, bem como de pés com quatro dedos entre os animais mamíferos.
Reinterpretando o material
A suposição da presença de Brasilichnium elusivum a partir dos rastros fossilizado, no estudo mais recente entendidas como rastros de tetrápodes indeterminados, permitiu a aos pesquisadores anteriores a proposição de uma icnofauna mais meridional encontrada até então durante o início do Cretáceo.
A análise mais atual, no entanto, defende que esse registro deve ser visto com cautela. Portanto, com base nos argumentos apresentados no estudo, os pesquisadores indicam que as pegadas atribuídas à Formação Botucatu, ao contrário do proposto por trabalhos anteriores, podem não proceder de Santa Cruz do Sul.
Mas, mesmo que esta fonte de origem do material se prove correta, não é um indicativo direto de que a icnofauna de Santa Cruz do Sul seja contemporânea às icnofaunas clássicas encontradas na borda nordeste da Bacia do Paraná, que compreende uma grande extensão na Região Sul do Brasil.
Por fim, análises mais recentes indicaram que ambos os rastros presentes na laje proveniente de Santa Cruz do Sul não podem ser atribuídos inequivocamente a nenhum rastro específico ou classificado em um determinado icnotaxon, devido à falta de características morfológicas bem preservadas no material.
Os pesquisadores discordam da classificação icnotaxonômica original e argumentam sobre a necessidade de mais dados para a entender melhor a distribuição espaço-temporal dos tetrápodes no Cretáceo para a Formação Geológica Botucatu, da bacia do Paraná.
Implicações do estudo
“Nosso trabalho revisa um material histórico, cujas conclusões originais foram, agora, contestadas”, explica o professor Heitor Francischini.
“Originalmente, esse material foi descrito como sendo a ocorrência mais ao sul das pegadas Brasilichnium elusivum da Formação Botucatu, indicando a presença de mamíferos na região mais meridional do paleodeserto que forma esta unidade geológica. Mas a nossa análise sugere que este material não possui uma preservação boa o suficiente para que esta conclusão seja feita”, disse.
Este estudo faz parte de um projeto maior, cujo objetivo é revisar as principais evidências da ocupação dos desertos ao longo do tempo geológico. Assim, novos trabalhos estão em andamento. O material estudado seria o único registro de pegadas fósseis para a Formação Botucatu em todo o estado do Rio Grande do Sul.
“Apesar de sugerirmos que pode-se tratar de uma laje proveniente de outra unidade geológica (até mesmo de outro período geológico), foi necessário revisá-la para que pudéssemos ter certeza se se tratava realmente de pegadas de mamíferos. Então, pode-se dizer que a revisão feita por nós foi só a ponta de um grande iceberg que é o tema da pesquisa – a ocupação dos desertos por vertebrados ao longo do tempo geológico”, finalizou.