Aquela madrugada de domingo, 27 de janeiro de 2013, está forjada na memória de todo o gaúcho. É a data de uma das maiores tragédias do nosso tempo. A morte inexplicável de 242 pessoas dentro de uma boate em Santa Maria, no coração do Rio Grande do Sul.
O incêndio começou por volta das 3h da manhã, quando um sinalizador foi aceso no palco da Kiss, localizada na rua dos Andradas, centro de Santa Maria. As fagulhas atingiram uma espuma colocada no teto para reduzir a propagação do som e não incomodar os vizinhos. As chamas destruíram a espuma, gerando uma nuvem tóxica de fumaça. Desesperados, os frequentadores tentaram sair do local.
A sinalização colocada na boate foi inútil, principalmente após a fumaça se espalhar e a luz da boate ser desligada. Muitas vítimas confundiram os banheiros como a saída, onde acabaram perecendo. Quem tentava sair pela porta – único acesso ao prédio –também esbarrava nos guarda corpos que serviam para direcionar as pessoas ao caixa. Várias pessoas que saíram ilesas voltaram para ajudar, mas não suportaram a intoxicação.
O primeiro relato da ocorrência, feito pela Brigada Militar por volta das 5h da manhã, falava apenas em “feridos e mortos”. Por volta das 7h da manhã, já se falava em mais de 70 mortos. Às 9h, eram 140 vítimas. Aquele domingo encerrou com 233 mortos e mais de 630 feridos.
Em resposta à tragédia, foi montada uma operação de guerra. Os corpos foram encaminhados para um ginásio em caminhões baú da Brigada Militar para a identificação. No período da tarde, começa o velório coletivo no Centro Desportivo Municipal. Os sepultamentos ocorrem no domingo e nos dias seguintes.
Os feridos, muitos deles em estado grave, foram encaminhados para hospitais. Os que tinham estado mais crítico, foram encaminhados para Porto Alegre, onde receberam atendimento especializado para queimaduras e intoxicação.
Responsabilidades
No dia seguinte ao incêndio, foi decretada a prisão temporária dos sócios da boate Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, e dos músicos da banda “Gurizada Fandangueira” Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos. Eles seriam soltos quatro meses depois, em 29 de maio.
A Polícia Civil concluiu o inquérito policial da tragédia no dia 22 de março de 2013. No dia 3 de abril, a Justiça acolheu a denúncia apresentada pelo Ministério Público. Viraram réus contra Elissandro, Mauro, Marcelo e Luciano Augusto Bonilha Leão por crimes de homicídio qualificado, nas formas consumada e tentada, diversas vezes, em concurso de agentes e em concurso formal de delito. O júri deles ocorreu em dezembro de 2021, mas foi anulado após pedido das defesas.
Além dos quatro réus por homicídio, 19 pessoas, entre bombeiros e ex-sócios da boate, foram acusadas por crimes como falsidade ideológica e negligência. Outras 27 pessoas foram denunciadas por falsidade ideológica, porque assinaram documento dizendo morar a menos de 100 metros da boate, o que foi comprovado como mentira.
Idas e vindas na Justiça
A partir de 2014, o processo da Kiss passou a avançar e recuar dentro do sistema Judiciário. Em 2016, a justiça de Santa Maria decidiu os réus seriam julgados por meio de júri popular. Depois de idas e vindas, com uma guerra de recursos judiciais, em 2018 se pactuou o tribunal do júri. O mesmo embroglio ocorreu quanto ao desaforamento do caso de Santa Maria e sua transferência para Porto Alegre.
O julgamento dos quatro réus começou em 1º de dezembro de 2021 e terminou 10 dias depois, na maior sessão já realizada na história do Rio Grande do Sul. Elissandro Callegaro Spohr, Mauro Londero Hoffmann, Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos foram condenados, mas não foram presos.
Decisão do desembargador Manuel José Martinez Lucas, da 1ª Câmara Criminal do TJRS, no entanto, garante um habeas corpus, impedindo a prisão. A partir daí, começa uma nova guerra de decisões judiciais, que acaba levando os quatro para a prisão entre 14 de dezembro e 3 de agosto de 2022, quando o julgamento é anulado. Os réus no processo seguem em liberdade, mas sem uma definição de seu futuro. Ainda não há uma data para novo julgamento.
Dez anos de dor
O incêndio na boate Kiss provoca muita dor e dá a nítida sensação de impunidade. Várias ações foram realizadas nestes dez anos para amparar os familiares.
Na noite em que a tragédia completa 10 anos, a Associação de Familiares de Vítimas de Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, em conjunto com o Coletivo Kiss: Que Não Se Repita e o Eixo Kiss do Coletivo de Psicanálise de Santa Maria fazem uma vigília em frente ao prédio em que funcionava a boate.
O evento se chama “Janeiro 27: resgatar a memória é construir o futuro”. O objetivo é claro: que uma tragédia como esta nunca mais se repita.
Nesta sexta-feira (27), as atividades ocorrem na Praça Saldanha Marinho, a partir das 10h. Será realizada a exibição do primeiro episódio do Documentário “Boate Kiss – A Tragédia de Santa Maria” (Globoplay, 2022), no Auditório do Colégio Marista Santa Maria. Haverá um painel com atividades, também as 10h, para aqueles que não quiserem assistir ao documentário, segue na Praça Saldanha Marinho.
O cronograma de homenagens se encerra no sábado (28), com missa em homenagem aos 242 jovens, na Basílica Nossa Senhora Medianeira, às 20h.
A dor de quem perdeu um ente querido é algo que a razão mal consegue explicar. A dor de Santa Maria é infitamente maior. É como se o tempo tivesse parado naquela madrugada de 27 de janeiro de 2013. A vida seguiu, o tempo correu, mas nada será como era antes. Passaram 10 dias, 10 meses e, agora, 10 anos. A dor de Santa Maria continua a mesma.