Porto Alegre, ano de 2035… “…Quem chega pela BR-290 e tem uma visão panorâmica da Capital gaúcha, vê uma cidade tomada por prédios espelhados, que apareceram à revelia de velhos problemas. A passagem de ônibus já passa dos R$ 10, mesmo sob contundentes protestos dos estudantes. Há quedas de luz e pessoas morando nas ruas. No mais, avança a construção da segunda roda-gigante da cidade…Na zona sul, Hugo fita a praia de Ipanema… Logo mais, em um gueto qualquer, haverá uma festa flashback anos 80…”
Do lado de fora, a Boate Continental era uma velha casa modesta, não só modesta como um tanto isolada, ao ponto de não suscitar nem a imaginação nem a cólera da vizinhança. Dentro, a música, os lasers e o gelo seco criavam um mundo à parte. As pessoas dançavam de jeans, tanto calças de cintura alta quanto jaquetas, e All Stars Chuck Taylor. Havia ainda vestidos de paetês, lamê e lurex. Tudo muito colorido e repleto de estampas. Os cortes de cabelo, os óculos e brincos chamativos davam o toque final de atitude e presença de espírito de cada um.
Quando eu entrei na casa, já no meio da madrugada, tocava Power of Love, de Huey Lewis. Dei uma olhada no ambiente, escutei a música, senti o perfume no ar e fui até o bar. Pedi um Sex On The Beach e logo fui servido pelo garçom. Neste momento, escuto ao meu lado: “Cuba Libre, por favor”.
– É a melhor bebida da festa, fica a dica – disse depois para mim
– Fiquei com vontade, vou experimentar – respondi.
– Prazer, meu nome é Éden.
– Prazer, Hugo.
– Hugo?! Séculos que não escuto esse nome.
– É por causa do Hugo de León, zagueiro antigo do Grêmio, meu pai era fã.
– E como que um cara com nome de jogador old school vem parar em uma festa dessas…? Vem cá.. vamos ali naquela mesa mais longe da música que eu fiquei com curiosidade.
Sentamos para conversar. Quando olho no horizonte, porém, vejo na minha linha de visão uma pessoa que me faria ter de dividir atenções entre ela e o papo com Éden. Tratava-se de uma mulher alta e corpo de academia. A roupa seguia o tom da festa, com a exceção do fato de ser toda preta. Ela tinha cílios longos, que davam muita expressão a seus olhos, os quais estavam direcionados para mim. O batom vermelho fazia sua boca vibrar e o blush saturarava as maçãs rústicas de seu rosto. Não fossem os longos cabelos negros e eu diria que trocava olhares com a própria Madonna. Então Éden me pergunta:
– Tu é de onde?
– Dom Pedrito, eu vim para visitar a parte da família que mora aqui. Amanhã vamos fazer um almoço e depois ver o Grêmio.
– A catequese do futebol é forte lá então? – perguntou bem humorada, quando o DJ botou para tocar Thriller, de Michael Jackson.
– Sim, meu pai se esforçou para eu ser gremista. Lembro de uma vez que ele saiu lá de fora, já tinha se separado da minha mãe, para ver comigo um jogo contra o Flamengo. O Grêmio tinha que virar um 2 a 0 e mesmo assim a gente acreditava. No fim não deu. Mas ali fiquei com o sentimento, ao ponto de me lembrar do jogo seguinte, acho que contra o Bragantino…
*
Na verdade, caro leitor, o jogo seguinte do Grêmio naquela temporada foi contra o Santos, na Vila Belmiro, pelo Campeonato Brasileiro. Visto ser um jogo pós-eliminação e de um campeonato onde o Tricolor gaúcho praticamente já não disputava o título, talvez se perder nos pormenores do ocorrido não tenha muito valor. Mas, uma vez que provavelmente seja a partida o motivo de seu clique no texto e também que o ato falho de Hugo abre uma reflexão sobre as traições da memória, faço um relato sumário do confronto. Peço desculpas, mas garanto que, em contrapartida, o texto ficará com ares mais galantes e joviais.
Fossem as pernas dos jogadores canetas, diria que o primeiro tempo da partida foi escrito com a tinta da monotonia. Quase nada foi produzido. Para tornar o entretenimento ainda menos atraente, o Grêmio não tinha Suárez, suspenso. O gol esteve mais próximo somente minutos antes do intervalo, quando Marcos Leonardo recebeu passe dentro da área e, ao invés de chutar, tentou sem êxito a assistência. Errou a tomada de decisão como muitas vezes erra o autor na hora de escolher o destino de seus personagens. Logo, para evitar a hipocrisia, me furto de criticá-lo.
No segundo tempo, a torcida viu gols. O time do coração de Hugo saiu na frente com gol de Cristaldo. Do entrada da área pelo lado direito, ele chutou forte, forte como podem ser as palavras graves do escritor. Se Cristaldo é o autor, pode-se dizer que o arqueiro João Paulo, enquanto leitor, recebeu o texto do jogador do Grêmio antes como um golpe para o corpo do que como uma interpretação para a inteligência. Atesta a tese o fato de o goleiro ter feito o gesto de defesa com as mãos quando a bola já estufava as redes.
Mas não terminaria aí. Minutos depois, Marcos Leonardo recebeu dentro da área e reescreveu sua história na partida. Na página seguinte da partida, como se o destino fosse manipulável, esperou a saída de Gabriel Grando e empatou a partida. Os dois lances, do Grêmio e do Santos, soaram de certa forma isolados, e, se é que é possível se colocar no lugar de todo mundo, a sensação era de que o jogo ficaria nisso.
Contudo, o lance da partida viria do campo da meteorologia. Já nos minutos finais, o Grêmio cobrou escanteio e a defesa do Santos afastou. A bola ganhou altura e foi indo na direção da linha lateral, ao ponto dos atletas gremistas pensarem que ela sairia, o que, no entanto, não aconteceu. Aparentemente foi o vento que a trouxe de volta para o campo. O Santos puxou contra-ataque e a jogada terminou em Julio Furch, que virou o jogo. Teve reclamação. Até Renato foi expulso. Com o resultado, o Grêmio terminava o domingo em quinto lugar, com 33 pontos.
Talvez Hugo não lembre direito deste dia justamente pela suas ternas memórias de infância em relação ao futebol. Guarda-se o bom, arquiva-se o desagradável. Talvez isso seja sadio. Assim como, mesmo permanecendo no Z-4, o santistas lembrarão do vento e de um belo domingo de sol no litoral paulista.
Feito o relato, voltemos ao diálogo da Continental. Éden fala:
*
– Entendi. Ba, eu só via futebol por causa do meu filho. Esses dias completou um ano que ele se mudou para São Paulo para trabalhar. Na época, eu estranhei a partida dele, mas tô me acostumando. Tenho saído mais e tal. Daqui a pouco meu namorado vem me buscar inclusive. Mas… pelo visto tu também gosta de sair um pouco desse universo futebolístico… para estar aqui…
– Ah sim, eu sempre curti pesquisar festas, cultura pop. Sempre que venho a Porto Alegre, ou vou a uma cidade maior, acho uma coisa na noite para fazer – digo
– Aham, sei, entendi – respondeu Éden, no momento em que chega o aguardado namorado – Olha ali! Chegou… Tchau meu zagueiro, aproveita a festa que eu já cansei… bom te conhecer
– Até logo, Éden.
Éden vai embora quando toca na festa Lanterna dos Afogados, dos Paralamas do Sucesso. Olho para o resto de meu Sex On The Beach, já mais gelo derretido, e percebo que a canção me faz pensar também no lado inexorável da solidão. Mas quando retomei o olhar no horizonte, quem eu vejo? A Madonna. Luz no fim do túnel. Ela chegou na minha mesa com dois Blood Marys. Seu cumprimento foi breve como pedia a ocasião, mas ardente como é o amor. Prólogo de uma noite de delícias.
Ainda é cedo para saber como terminaria esta noite. Ou será que já sabemos? Não irei me alongar no capítulo, até por saber do limite de tempo que tens para se dedicar a essa sinuosa história. “O relógio é uma invenção perpétua”. Mesmo assim, te peço, caro leitor: tenha paciência! Não há pressa para envelhecer, o texto é uma maneira de ver a vida passar devagar. Daqui onde falo contemplo presente, passado e futuro, e te garanto: há poucas coisas mais sublimes que acompanhar o que há de divino no profano mundo dos vivos.