“…Noite de quarta-feira, 26 de julho de 2023. Arena do Grêmio, Porto Alegre. O Flamengo vence o Tricolor gaúcho por 2 a 0 e sai na frente nas semifinais da Copa do Brasil. Na coletiva, Renato lamenta: ‘nós temos que ser realistas, o Grêmio vem de uma segunda divisão, nós mudamos praticamente 50, 60% do nosso grupo, trouxemos jogadores, ganhamos o Campeonato Gaúcho, ganhamos a Recopa e estamos bem no Brasileiro. Nós não vamos ganhar de todo mundo. Tem hora que nós vamos perder’”.
Seis horas da manhã de 27 de julho… Em um ponto remoto da Região da Campanha gaúcha, Airton racha lenha na estância. A lã o protege do frio enquanto, no intervalo entre um golpe de machado e outro, ele reza por uma trégua no mau tempo. Mas a derrota do Grêmio e a fala de Renato ainda estão em sua cabeça. O vento gelado do pampa assovia um canto melancólico de resignação e desesperança.
“…Manhã de domingo, 30 de julho. A rádio relata: “Após a vitória do Rubro-Negro carioca contra o Atlético-MG, em Minas Gerais, pelo Campeonato Brasileiro, o atacante flamenguista Pedro recebeu um soco no rosto do preparador físico Pablo Fernández. O caso acabou na delegacia. O Flamengo parece ter um princípio de crise com parte da torcida já pedindo a saída de Sampaoli”.
Na estância, Airton desliga o rádio, hábito que mantinha mesmo com a chegada dos smartphones, o qual colocou para carregar, e vai aproveitar o dia. Depois da notícia que ouvira, algo mudara em seu semblante. No galpão, onde ficam suas ferramentas, ele olha na parede, já gasto, o poster do Grêmio de 83. Em destaque o herói Renato, cuja jovem imagem até hoje rejuvenesce seu olhar. “Será que vai?”. A razão, no entanto, ponderava. O placar ainda parecia irreversível. O melhor a fazer, ao invés de sonhar, era se ater à lida, se voltar para o sentido da brisa, para o tempo do sol e para as vozes da vida, que ele conhecia bem.
Os dias seguintes, contudo, acabariam com sua serenidade bucólica. O tempo passava a galope e, uma a uma, chegavam as notícias da derrota do Flamengo por 3 a 0 para modesto Cuiabá e, mais adiante, da eliminação do Rubro-Negro na Libertadores para o Olímpia. O clima na Gávea era pesado. Enquanto isso, na Campanha gaúcha, era agora o coração de Airton um apanhado de lenha. Faltava apenas uma última fagulha para acender as chamas definitivas da esperança.
Até que veio o dia de ontem (15), véspera da decisão. Em um treino do Flamengo, os atletas Gerson e Varela foram às vias de fato. Varela teve fratura no nariz. A crise estava, enfim, estabelecida por aquelas bandas. E a instabilidade no adversário acabou com qualquer prudência de Airton. Hoje, dia da partida, ele largou os afazeres, se descompassou com a natureza, entrou na carreta e foi à cidade, onde outros tricolores, todos iludidos, cambiavam sonhos.
Antes era o Rádio, agora é a TV. Que operação Renato prepararia…? Não era um jogo para algo corriqueiro. Era preciso ser sorrateiro no Maracanã, palco da partida, onde se encontrava, mesmo que em decadente turbulência, toda casta do futebol brasileiro, mais os olhos da Nação, à espera de uma resposta dos mandantes. Devia ser algo subterrâneo, beirando o invisível, e ninguém melhor que Renato, que circula entre esses dois mundos, para pegar o Flamengo desprevenido.
A escalação foi divulgada às 20h30. Na Campanha, um guri da cidade a viu nas redes sociais e se adiantou à transmissão. No mesmo instante, Airton a recebeu em um grupo. O meticuloso plano traçado agora era público e chegava em segundos aos confins do Brasil. Renato optou por dois estrangeiros no meio: Carballo e Cristaldo. Dois infiltrados com a missão de dar suporte a Suárez, “El Pistolero”, o encarregado de ratificar a desgraça flamenguista.
Na Campanha, passava de mão em mão a tábua com nacos de carne gorda.
O primeiro tempo terminou zero a zero. Ambos os goleiros, Grando e Matheus Cunha tiveram de trabalhar. O Flamengo teve mais a bola, mas quem assustou mais foi o Tricolor. Além disso, ainda que faltasse menos tempo para o Rubro-Negro confirmar a classificação, a boa postura do Grêmio manteve a tensão no ar no Maraca. Ninguém tinha futuro garantido, os dados seguiam lançados.
Airton, como todo gremista, não só se mantinha acreditando, como se permitia projetar uma final contra o São Paulo que, no Morumbi, eliminava o Corinthians e passava à final da Copa do Brasil. Ele ia das lembranças de 97, quando o Grêmio venceu essa mesma competição, neste mesmo estádio, contra o mesmo Flamengo, aos devaneios de uma possível redenção de Luan.
O Grêmio estava em território adversário, precisava de gols, então veio para o segundo tempo disposto a correr mais riscos. Mas a mágica não acontecia. Aos 24, os gremistas, entre eles Airton, acordam, como se tivessem sido sacudidos. Após cobrança de escanteio, Léo Pereira cabeceia e a bola fica com Grando. Porém, o Flamengo reclamou toque de braço de Rodrigo Ely no meio da caminho. O árbitro Bráulio da Silva Machado recorreu ao VAR e marcou a penalidade. Duvidoso. Arrascaeta bateu e marcou.
O restante do jogo foi protocolar. Finalizada a partida, um pouco de confusão, mas o Grêmio acaba no vestiário. Horas depois, Airton encosta a carreta e se encerra no quarto. No Rio e na estância, fecham-se as portas. Suspiros, lástimas. Nem todo dia é dia de especular mundos desconhecidos. Renato foi profético. Visionário da lucidez: “nós temos que ser realistas”. Triste noite. Ponto final.