*Contém spoiler
Lembrei de uma conversa via live, de 2021, entre o psicanalista Christian Dunker e o crítico de cinema Marcelo Janot, sobre a obra do cineasta Quentin Tarantino. Em um dado momento, Janot fala sobre como as narrativas do diretor trazem reflexões sobre a própria história do cinema. No caso, o crítico falou da cena de Pulp Fiction (1994) em que o personagem de Bruce Willis mata o personagem de John Travolta. Para Janot, nesse acontecimento Tarantino trata da transição dos filmes dos anos 70, da Nova Hollywood, representados por Travolta, para os filmes de ação dos anos 80-90, representados por Bruce Willis.
Tive uma sensação semelhante vendo os primeiros episódios da série The Last of Us (2023). Em poucas palavras, a história é uma espécie de distopia em que, diante das mudanças climáticas, fungos tomam conta da terra e passam a infectar seres humanos, fazendo com que eles se transformem em monstros que transmitem aquela doença quando atacam pessoas ainda não infectadas. Nesse contexto, surgem como heróis da jornada Joel (Pedro Pascal) e Ellie (Bella Ramsey), uma menina que, entre outras coisas, possui como característica ser imune à infecção.
Os dois andam pelos EUA, naquela altura um país já destruído. Joel possui uma notável destreza no manuseio de armas de fogo, e isso permite a ele proteger a menina dos monstros infectados. Então, a história se passa toda nesse mote, bem como o produto que deu origem à série, um jogo de videogame homônimo. E os autores parecem em determinado momento tratar na narrativa desta incorporação do mundo dos jogos eletrônicos para o interior do cinema.
O resultado é essa mescla da clássica imagem audiovisual, que atrai o espectador através de um jogo de símbolos, significados e linguagens, com essa perspectiva já não tão nova trazida pelos games, em que a imersão do espectador é levada a outro nível. Afinal, nos games surge essa ideia de que o rumo da história depende diretamente das ações daquele que joga. Mas os frutos desse encontro de modos de narrar não param por aí.
O episódio 3 conta a história do casal Bill (Nick Offerman) e Frank (Murray Bartlett), dois homens que se conhecem no mundo já pós-apocalíptico, e dividem uma casa toda protegida do mundo externo. Eles chegam a conhecer Joel e Ellie, mas preferem passar o restante da vida naquele lugar. O episódio termina com os dois optando por decidir pela hora de sua morte, o que é narrado de forma extremamente poética.
Pensei justamente, sob o ponto de vista metanarrativo, nesse contraste entre a narrativa do casal, história muito típica de um certo cinema de caráter contracultural, e que na série vem à tona em forma de ocaso, e esse novo modelo trazido pelos jogos eletrônicos, feito de jornadas, desafios, em um misto maximizado de ação e fantasia. A história de Bill e Frank dá lugar à jornada de Joel e Ellie.
É como se os produtores, além de dizer que as novas gerações estão sob influência de outras narrativas, tomassem também como estratégia trazer os consumidores dessa indústria dos games, que já é maior que a cinematográfica, para dentro dos debates sobre o fim do mundo.
Mas que implicações há nisso? É bem verdade que a salvação da terra é um tema que mais e mais ocupa diversos espaços de debate. Contudo, não existe uma narrativa única, nem entre governos nem entre especialistas, sobre qual o caminho para dirimir o colapso ambiental. Assim, The Last of Us parece um convite à juventude, para que ela participe da solução do problema, a partir dos próprios modelos em que ela se habituou a viver.
Ao mesmo tempo, pode haver um efeito colateral, no que diz respeito à normalização da catástrofe. Como se, através da série, todos nós já fôssemos nos acostumando com a degradação do mundo, e só nos restasse pensar a respeito da sobrevivência em um mundo em ruínas. Então, de certa forma, o formato do game, com ênfase no desafio, tem esse misto: nós aceitamos o colapso, mas somos conduzidos à esperança de salvação através da soma aventureira de esforços.