
Já repararam que uma torneira elétrica é meio anômala? Ou surrealista. Uma junção de hastes assimétricas, que dão num motor inflado em relação às demais peças, e um caninho que sobe comprido como o pescoço da girafa. Mas surrealista é ainda querer dizer muita coisa. Ela só chama atenção por estar ali. É opaca como tudo à volta e, por ser opaca, é apenas triste, uma tristeza morna como a água, que mais ou menos amortecia a melancolia dele.
Ele não é melancólico, só tem uma tristeza morna, separada das coisas que estão ali. Estas sentem coisas das mais variadas. Ele só arriscava ser mero reflexo pressuposto. Se fosse água fria, seria uma tristeza como a daquele dia em que chorava na chuva. Assim, um dos efeitos da compra da torneira foi fazê-lo justamente, de modo enganoso, sentir-se menos piegas.
Além disso, fazia uns dias, tentava ser prático. Queria muito mudar, sentia-se um átomo abstrato em uma galáxia morta. Abnegou-se então à vida cotidiana, atitude que o fez reparar na torneira elétrica. Para os dias de frio o esquisito aparelho era uma grande alegria. O motor da torneira fez ele lembrar das raias elétricas e essas uma variedade de outras coisas.
Olhava a casa, a cidade. Cada coisa era uma coisa. Cada coisa tinha uma força e uma forma muito particular que colocava seu pensamento em movimento, trazendo fortes impressões. Exemplo, as raias elétricas lembravam aquelas naves alienígenas de filmes onde os americanos salvam o planeta. Esses filmes geralmente eram vistos em fitas cassetes de locadora. E as fitas lhe faziam pensar que seria bom comer mais frutas, e essa associação ele não entendeu.
Lhe pareceu que a vida era também uma coisa. Um amontoado delas. Algo que de certa forma estava dado, de modo necessário, independente da sua escolha. E uma dessas coisas era a vontade de permanecer vivo. Assim, escolhia permanecer vivo, vivendo os ciclos e o prazer das transformações. Estava então entre a eterna repetição da tragédia grega e a eterna mudança e impermanência.
Então tudo acabou, e recomeçou. Tinha a torneira elétrica, o chocolate e o café, os pássaros nos galhos da araucária, o shampoo e as pessoas amadas, próximas e distantes. Caoticamente engendrados e não havia por que classificá-los, selecioná-los. Pensava naquilo ouvindo John Cage.
Seu ser eram coisas, cacos de espelho, que se juntavam como em um quebra cabeça. Côncavos, convexos, distorções. Silêncio. Mas não eram só os cacos que o olhavam, tudo o olhava de volta, inclusive a torneira elétrica. É como se ela mostrasse a profunda bizarrice.
A bizarrice estava dada, era necessária, incontornável. Era uma ontem, uma hoje e precisava ser outra amanhã, era como um constante rio e sua corrente pura e material. John Cage. A bizarrice escapa dos números, diagramas, das réguas.
Escapa como o vapor escapa das águas, como a energia do calor escapa do trabalho. Como as palavras escapam deslizando das coisas. John Cage. Silêncio. Ainda estava parado, olhando a torneira elétrica. Tudo é bizarramente lindo quando prende-se a atenção.