Em 20 de novembro, dia da Consciência Negra, a capital paulista ganha uma escultura de homenagem ao arquiteto e artesão Joaquim Pinto de Oliveira, que adquiriu notoriedade não só por seu trabalho, mas por dar visibilidade ao racismo no Brasil.
Conhecido por Tebas, ele assumiu a construção da primeira torre da Matriz da Sé, entre 1750 e 1755, após a morte do homem que se considerava seu senhor, e reformou-a, em seguida, em troca de sua alforria.
Criada pela arquiteta Francine Moura e pelo artista plástico Lumumba Afroindígena, ao longo de dois meses, a escultura, feita de aço inox , ferro e concreto, tem 3,6 metros de altura por 1,5 metro de largura e 2,6 metros de profundidade e ficará no centro da capital. O monumento será oficialmente inaugurado no dia 3 de dezembro, com organização da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.
Tebas
Habilidoso no entalhe e na ornamentação de pedras, Tebas acabou se tornando um ícone da arquitetura colonial. Conforme evidencia o livro Tebas: um negro arquiteto na São Paulo escravocrata, organizado por Abilio Ferreira, o racismo, que também permeia a área de arquitetura e urbanismo, ocasionou, no caso de Tebas, a falta de reconhecimento. Até mesmo um historiador, Nuno Sant'Anna, levantou suspeita sobre a vida e a capacidade de Tebas, por ele possuir um sobrenome e saber ler e escrever, algo que não era comum a escravos, mas que, na realidade, indicava que um movimento de emancipação estava em curso.
Segundo os autores do livro, Tebas desenvolveu diversas tarefas, a pedido de líderes religiosos do município, sendo que, em pelo menos quatro igrejas foram encontrados documentos comprovando sua participação: na construção da Matriz, na do Mosteiro de São Bento (1766), na obra da capela da Ordem Terceira do Seráfico São Francisco e na da capela da Ordem Terceira do Carmo. Também foi autor da torre do Recolhimento de Santa Tereza, edifício construído em 1685, na atual Rua do Carmo, e demolido no início do século XX, e do Chafariz da Misericórdia, obra em que atuou como engenheiro hidráulico. Foi devido à aptidão demonstrada no projeto do chafariz que recebeu o apelido de Tebas, que significa algo como “homem que tudo faz”, em kimbundu, língua africana.
Contudo, citam os pesquisadores, algumas das relações que o arquiteto estabeleceu eram ambíguas, já que a única certeza que deixavam era o rastro de opressão sobre ele. Como exemplo, citam o vínculo que manteve com a viúva de seu proprietário, Dona Antonia Maria Pinto, para quem continuava a trabalhar “com relativa autonomia”. Mesmo quando ainda trabalhava para seu senhor, o mestre pedreiro português Bento de Oliveira Lima, não se sabe, pelos registros históricos, se estava realmente alforriado ou não.
Escultores
Para Francine, o fato de a liberdade de Tebas não ter lhe sido assegurada, mas sim conquistada por ele, diz muito sobre a violência que assola a população negra do país, desde sempre. Ela lembra, ainda, que, para poder sobreviver em uma sociedade racista como a do Brasil, muitos negros se viram obrigados a constituir negociações com os brancos, o que ainda ocorre, nos dias de hoje. “A gente vê tanta estratégias que aconteceram, especialmente entre as mulheres pretas”, afirma ela, que é pesquisadora na área de espaços públicos e coletivos e especialista em Educação, Relações Étnico-Raciais e Sociedade.
Francine diz, ainda, que a escultura é um elemento “simbólico, poético e político” e que tem o propósito de servir como ferramenta que permita aos negros vislumbrar “um portal para um novo tempo”, opinião compartilhada pelo parceiro de trabalho. “Todos nós estamos buscando nossa alforria. O que é alforria? Você ter três, quatro alimentações por dia, poder ir e vir sem sentir calafrio na espinha? Eu, por exemplo, sinto, quando vejo uma viatura da polícia, em uma rua, sozinho, e me sentir totalmente exposto, frágil como um bebê de colo. Alforria é isso. A gente ainda está buscando isso. Ele alcançou aos 57. Mas quantos de nós estamos sem alcançar?”, provoca Lumumba Afroindígena.
“Ele [Tebas] foi reconhecido agora, mais de 200 anos depois de sua morte. Que alforria é essa? Fico sempre me questionando e levando [adiante] esses questionamentos”, acrescenta o artista, que já ocupou espaços como a Fundação Nacional das Artes (Funarte) e Matilha Cultural e assinou esculturas de óperas infantis, no Theatro Municipal de São Paulo.
Francine comenta, ainda, sobre quão doloroso pode ser a confirmação de que muitos dos episódios que se viveu foram resultado de racismo. Ela conta que, desde pequena, sua mãe a alertava para a probabilidade de ser vítima de discriminação racial e que, apesar disso, a tomada de consciência chegou há pouco tempo. “Só fui ter consciência de muitas coisas que me atravessaram agora, recentemente, em 2017, por aí, quando fui fazer especialização em relações étnico-raciais”, afirma.
“A gente sofre um apagamento diário, de legitimação a partir de um sistema extremamente cruel, desumano”, complementa Lumumba Afroindígena.