A política de mobilidade urbana é uma preocupação que vem ganhando importância nos últimos anos por diversos motivos. Manter o desenvolvimento de grandes cidades com menos prejuízos ao meio ambiente é desafio mundo afora. No Brasil, os protestos de 2013, que levaram milhões de pessoas às ruas iniciaram, após o anúncio de aumento de tarifa de transporte público, considerado de baixa qualidade pelos usuários.
Segundo a pesquisa Mobilidade da População Urbana 2017, publicada pela Confederação Nacional do Transporte (CNT) e pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), o brasileiro vê o transporte como o quarto maior problema das cidades, perdendo apenas para a segurança, a saúde e o desemprego.
O tema é foco dos debates de candidatos às eleições deste ano. Devido a essa relevância, a Agência Brasil preparou um especial para mostrar algumas das boas práticas desenvolvidas no país, e, por outro lado, os problemas a serem enfrentados. A primeira reportagem mostra um modelo desenvolvido há décadas em Curitiba, cidade referência no sistema de embarque rápido de passageiros.
Nos últimos anos, a proporção de pessoas que gasta mais de uma hora por dia para se deslocar de casa para o trabalho subiu de 8,9% em 2011, para 10,2% em 2015. A média de tempo de deslocamento também cresceu. Em 2001, os brasileiros gastavam 28,7 minutos. Esse número subiu para 30,3 minutos em 2015. Os dados são do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Rafael Pereira, pesquisador do instituto, acredita que houve uma visão equivocada nos últimos anos de priorização da indústria automobilística, representada principalmente pela isenção de impostos ao setor. Ele afirma que, apesar dos esforços, essa política não teve o efeito econômico desejado, de ampliação de emprego nas montadoras.
“O incentivo ao transporte individual motorizado não é uma coisa recente dos últimos 10 anos. É uma política que está entranhada há tanto tempo no governo federal e em outros governos locais, que reflete essa visão distorcida de priorização do transporte individual, do carro como um progresso, a representação do sucesso individual das pessoas e o crescimento da economia fundamentado numa indústria automobilística”, analisa.
O especialista em mobilidade urbana elogia o sistema da capital paranaense, cujo modelo foi replicado internacionalmente, mas aponta problemas de segregação espacial, em que a oferta de empregos e o acesso ao transporte continua priorizando as regiões centrais. “O ponto curioso de Curitiba é que quando você olha a desigualdade entre as pessoas ricas e pobres, é uma das maiores desigualdades do Brasil [no deslocamento casa/trabalho]. Brasília e Curitiba são as duas cidades onde o tempo que a pessoa pobre gasta no trânsito é bem maior do que o da pessoa rica”, aponta.
Modelo referência
Implantado em 1974 como modelo pioneiro de transporte público com ênfase no embarque rápido de passageiros, o sistema de Curitiba continua sendo referência de mobilidade urbana. Uma das razões é o fácil deslocamento de passageiros por meio dos 1.226 ônibus que compõem a frota, monitorada em tempo real por câmeras e mecanismos de geolocalização.
Para chegar à marca, a cidade com o maior número de BRTs em operação no país trilhou o caminho desejado na construção de uma política pública: planejamento permanente, integração entre outros modais e melhorias a longo prazo durante diferentes administrações. Assim como outros grandes temas, o sucesso nas políticas de mobilidade demonstra a necessidade de uma visão que transcenda mandatos e períodos eleitorais.
Desde o primeiro modelo de ônibus expresso, há 34 anos, até a atual disponibilização de veículos híbridos, passando pelos famosos biarticulados, criados em 1992 com capacidade para mais de 200 passageiros, o desenvolvimento de Curitiba foi estimulado com base em um sistema trinário: corredores exclusivos para os ônibus, abastecidos pelas chamadas estações tubo, proporcionando embarque ágil devido à cobrança antecipada da passagem.
Ao lado das vias exclusivas, foram construídas faixas para trânsito de carros em menor velocidade. Próximo às avenidas, o Poder Público estimulou sistematicamente a construção de prédios com o objetivo de priorizar o transporte público. Dessa forma, os edifícios de habitação, comércio e serviços podiam ser acessados a poucos metros das estações de ônibus.
A uma quadra dos corredores exclusivos, foram construídas vias de rápido deslocamento para automóveis, fazendo o trajeto Centro/Bairros e vice-versa. As quatro faixas de cada lado em um mesmo sentido foram concebidas para desafogar o trânsito e, como todo o sistema, incentivaram uma “fuga do centro” de moradores e empresários, de modo que eles não precisassem ir até lá para ter acesso a serviços básicos.
Hoje, são 329 estações tubo espalhadas por 14 municípios da região metropolitana que fazem parte da Rede Integrada de Transporte (RIT), além de 21 terminais de ônibus. Ao todo, a cidade tem 81 quilômetros de corredores exclusivos, que impossibilitam a invasão de carros por meio de bloqueios físicos.
De acordo com pesquisa da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), Curitiba é a cidade campeã, dentre 11 pesquisadas, no número de BRTs em operação: são oito sistemas que juntos chegam a quase 90 quilômetros. Os dois BRTs de Recife possuem 46 quilômetros. Já as cidades de Rio de Janeiro e Belo Horizonte têm três sistemas de BRTs cada uma, totalizando uma extensão de 122 km e 23 km, respectivamente.
Conforme os indicadores, porém, a cidade precisa aumentar faixas exclusivas, melhoria considerada barata em comparação com outras obras. Quanto à extensão da malha viária destinada ao transporte público, Curitiba tem apenas 2,6 km de faixas exclusivas. Somadas aos 87,8 km do BRT, a capital fica em quinto lugar (com 90,4 km) no ranking, atrás de São Paulo (585,3 km), Rio de Janeiro (165,4 km), Recife (114,3) e Fortaleza (107,3).
Integração com cidades próximas
A dona de casa Maria de Fátima, 64 anos, avalia positivamente a rede integrada. Ela lembra que propicia aos usuários transitar entre as cidades que compõem o sistema com a mesma tarifa, atualmente em R$ 4,25. “Para os trabalhadores é bem favorável, porque tem pessoas que ganham apenas um salário. Para pagar dois ônibus, às vezes até mais, dependendo da distância, aqui ainda é tranquilo”.
A inovação trouxe adeptos, e várias cidades ao longo do mundo adotaram o sistema que ficou conhecido como BRT. Em Bogotá, na Colômbia, o Transmilênio foi implantado em 2000 tendo como inspiração os conceitos da capital paranaense. Hoje em dia, a empresa pública URBS, que cuida da urbanização no município, recebe visita de delegações de estudantes brasileiros e gestores de outros países.
Para Adelmo Caetano Amélia, 51 anos, a cidade atende às necessidades de locomoção e acessibilidade para ele e a esposa, que são cegos. O aposentado conta que consegue sair de sua residência e se deslocar até o centro sem dificuldades. O trajeto de cerca de 15 minutos às vezes é repetido mais de uma vez ao longo do dia, com a ajuda apenas de uma muleta.
“Venho sozinho, não tem ninguém. É até bom para gente. Vou para o mercado, para as lojas, pago contas”, afirma, ao lado de Rosilda Solsa, de 50 anos. Sobre os avisos sonoros e comunicação em braile, ele diz que não encontra problemas. Após atravessar uma faixa de pedestres elevada, ele é perguntado se não se confunde quanto ao ponto correto do ônibus e responde tranquilamente: “Já decorei”.
Segundo a URBS, 94% de toda a rede de transportes são acessíveis para pessoas com deficiência, com rampa, elevador para cadeira de rodas nas estações e veículos, além de identificação em braile.
A única queixa de Adelmo é quando ele chega atrasado na parada. “Demora um pouquinho. Se eu não sair no horário certo, e a gente sabe o horário, tem que esperar [outro ônibus passar]”, diz, elogiando também o sistema de transporte de Florianópolis, capital onde morou há mais de 20 anos e em que também não tinha problemas em se locomover.
Menos passageiros
Apesar dos avanços, Curitiba não fugiu à realidade nacional de queda no número de passageiros que utilizam o transporte coletivo. Para essa conta, os especialistas no assunto analisam o Índice de Passageiro por Quilômetro Equivalente (IPKe).
O IPKe é considerado um dos principais parâmetros para medição da eficiência do transporte público, pois mede quantos passageiros têm utilizado o transporte coletivo a cada quilômetro rodado. Nos últimos anos, porém, ele tem caído, o que contribui, segundo representantes das empresas de ônibus, para o encarecimento do serviço.
Em 2013, o IPKe estava em 1,79. Esse número diminuiu para 1,48 no ano passado, o menor da série histórica. Registrando 1,88 passageiros por quilômetro este ano, o índice de Curitiba tem se mantido acima da média geral, embora também venha caindo.
Em nível nacional, o ônibus urbano apresenta queda na demanda pelo modal. De acordo com a NTU, em 20 anos, o transporte público perdeu 35,6% dos passageiros pagantes. De 2016 a 2017, estima-se que os coletivos deixaram de transportar uma média de 3,6 milhões de passageiros por dia.
Divisão do sistema
Devido a divergências políticas e disputas pela administração do dinheiro arrecadado entre prefeitura e governo do estado, a tão elogiada Tarifa Única deixou de existir em 2015, quando o sistema de bilhetagem da capital passou a funcionar de maneira desintegrada com o de algumas cidades da região metropolitana. Foi criada uma associação de empresas de transporte no entorno, a Metrocard, responsável por implantar, sob fiscalização do governo estadual, o Sistema de Bilhetagem Eletrônica das tarifas.
Segundo Luiz Alberto César, diretor-executivo das Empresas de Ônibus de Curitiba e Região Metropolitana, chamada Setransp, o preço da passagem chega a custar mais de R$ 6 em algumas cidades da região. “Foi ruim [para os usuários], porque depois da criação do sistema, eles [as prefeituras] foram criando anéis. Então quanto mais distante é [de Curitiba], mais caro fica. O usuário sai de um terminal mais próximo do centro, vai para uma cidade vizinha e depois para uma mais distante, aí acrescenta [o preço]”, disse.
Insatisfação
O diretor das empresas aponta dificuldades para suportar o custo do sistema, dentre elas a prioridade ao transporte individual concedida por diferentes sucessivas públicas. “O governo facilitou muito o financiamento para o carro popular, o preço da gasolina subiu menos que o do óleo diesel e isso foi fazendo com que o sistema ficasse estrangulado e diminuísse a velocidade média dos ônibus. Quanto mais demorado o trajeto, mais pessoas deixaram de andar de ônibus e com isso o custo da tarifa encarece”, avalia, apontando um círculo vicioso.
Os cidadãos de Curitiba testemunharam esse fenômeno ao longo dos anos. Em novembro de 2014, o preço era R$ 2,70, depois subiu para R$ 2,85 e foi sofrendo novos aumentos até chegar a R$ 3,70, em fevereiro do ano passado. Hoje, ele está em R$ 4,25 e precisará passar por nova avaliação daqui a seis meses.
O estudante Eduardo Berlesi, 22 anos, reclama da falta de conforto nos ônibus durante o horário de pico. “É sem condições, estressante, apertado. Quando eu tenho aula às 7h30, tenho que acordar 5h para tomar café, pegar ônibus e vir. A maioria das vezes viajo em pé; é difícil ter lugar no ônibus”, critica.
Ele mora em uma região de Curitiba que faz divisa com outros dois municípios, a 20 quilômetros da Universidade Federal do Paraná, onde faz o curso de engenharia elétrica e conta que se houvesse ciclovias em números suficientes, iria para a faculdade somente de bicicleta. “De ônibus, eu levo de 1h30 a 2h para chegar na universidade, sem contar o tempo de espera. De bicicleta eu levo 50 minutos”, conta.
“A preocupação com a mobilidade urbana é nacional. Hoje a gente vê que os carros estão sufocando os ônibus”, reflete Luiz Alberto. Segundo o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC), 207 quilômetros compõem atualmente a estrutura cicloviária da cidade, composta por ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas.
Nos próximos dois anos, a expectativa é de que cerca de 17 km novos estejam à disposição dos ciclistas. O órgão afirma também que estão sendo feitos estudos de expansão das faixas exclusivas de ônibus, que hoje não chegam a 10 km de extensão. A administração da cidade defende que o sistema cicloviário seja ampliado tendo em vista o princípio da multimodalidade. Assim, a meta é fazer com que os terminais de ônibus sejam o destino de ciclovias e estejam equipados com estruturas como bicicletários e vestiários.