O mundo celebra hoje (18) o centenário de Nelson Mandela, um dos maiores líderes do século 20.
O primeiro presidente negro da África do Sul, que teve papel determinante no fim do sistema de segregação racial conhecido como “apartheid”, completaria 100 anos nesta quarta-feira (18). O homem que nasceu livre para correr pelos campos ao redor da cabana onde morava e que passou 27 anos atrás das grades por seu engajamento na luta contra o racismo deixou lições para a humanidade.
Várias homenagens especiais serão realizadas no mundo inteiro em memória ao centenário. Uma extensa programação foi preparada e inclui exposições, debates, iniciativas de incentivo à educação, ao voluntariado, publicação de livros, lançamento de filmes, músicas e concertos em tributo ao líder que dedicou sua vida à luta pela liberdade e abriu caminho para a consolidação da democracia no continente africano.
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Por sua contribuição à luta antirracista, o 18 de julho foi transformado pelas Nações Unidas (ONU) no Mandela´s Day, o Dia Internacional Nelson Mandela – pela liberdade, justiça e democracia, uma forma de lembrar a dedicação e seus serviços à humanidade, com forte atuação também no enfrentamento ao vírus HIV e na mediação de conflitos.
Em entrevista exclusiva à Agência Brasil, o jornalista português António Mateus, que durante 10 anos trabalhou como correspondente da Agência Lusa em Moçambique e na África do Sul, destaca que teve o privilégio de conhecer Mandela e “beber na fonte” ensinamentos como a dedicação à tolerância, o fascínio pelo diferente e a capacidade de não julgar os outros.
“A noção de que a liderança deve ser feita de forma transparente e a serviço do povo; o fascínio pelos mais novos e a noção de que as crianças são o patrimônio que a humanidade constrói e que serão o repositório da nossa própria existência; o carinho pelo mais velhos e sua sabedoria acumulada, o respeito pela diversidade de culturas, religiões, raças, gêneros. É quase um caleidoscópio de referências”, afirmou Mateus.
António Mateus lembra que conviveu com Mandela desde a sua libertação, em 1990, até a saída da vida pública, nos anos 2000. “Tive um imenso privilégio. Aliás, todos nós, os jornalistas que convivemos com ele. Foram dez anos absolutamente extraordinários. Ele mudava a vida das pessoas que conviviam com ele”.
Segundo o jornalista, Mandela dizia que a vida é como um tijolo. “Podemos usar para atirar na cabeça do outro, para fazer um muro ou para fazer uma ponte”. Para Mandela, a solução passava pela construção de pontes.
Mateus acredita que as lições de Mandela permanecem atuais. “Temos de inverter a marcha de tanta coisa negativa para a qual o mundo está se encaminhando. Desde o Brasil, Portugal, Europa, Oriente Médio. Mandela deixou referências que são atuais em todos os países e continentes, de que é urgente acordarmos e começar a mudança em nós próprios. A viagem começa mesmo em nós”.
António Mateus é autor dos livros Mandela, a construção de um homem e Mandela – O Rebelde Exemplar, ambos publicados em Portugal.
Agência Brasil: Como o senhor acha que Mandela encararia o atual cenário político mundial?
António Mateus: Eu fiz essa pergunta ao presidente da Fundação Mandela, Sello Hatang, que esteve com ele até seus últimos momentos de lucidez. E ele me disse que, nos últimos dias, quando via os noticiários, Mandela sentia uma profunda tristeza e cansaço. Porque ele deu tanto de si para ver um mundo melhor, que ele ficava desconsolado. Por outro lado, via com muito positivismo as pessoas no contexto mundial que estão envolvidas a apontar os erros desses mesmos líderes. Posturas como as de Donald Trump, em todos os níveis, são uma vergonha ao lado da memória de Nelson Mandela. São vergonha para a humanidade inteira.
Agência Brasil: Como foi vivenciar o momento da libertação de Mandela?
Mateus: Quando Mandela foi libertado, o país quase caiu em guerra. Eu via coisas pavorosas. Existia um nível de barbaridade imensa. Mandela dizia que faz parte dos iluminados compartilhar a luz com os outros e que a nossa missão é também construir pontes para os que estão perdidos. Não é uma abordagem evangelizadora, é mais humanizante, pois ele dizia que os adversários dele, os promotores do apartheid, eram pessoas que tinham perdido a noção do humanismo. E que eles precisavam de ser ajudados nesse caminho. Essa abordagem do Mandela era absolutamente extraordinária, pois não estamos habituados a assumir para nós a responsabilidade de mostrar aos outros quando eles estão no caminho errado. Normalmente nós gritamos aos outros que eles estão no caminho errado. Mostrar dá muito mais trabalho. Ele sempre foi persistente nessa abordagem construtiva, mesmo com os maiores opositores. Mandela dizia: com eles [os opositores] é que nós temos que construir pontes.
Agência Brasil: O que a Europa tem a aprender com Mandela?
Mateus: Nós, na Europa, não olhamos para os imigrantes que vem pra cá. Os imigrantes são uma riqueza em termos humanos, são pessoas que sabem fazer outras coisas, que vêm determinadas a trabalhar e fazer com que suas vidas saiam do zero. Isso é uma benção para nós todos, deveria ser. Tantos brasileiros que vieram para Portugal, tantos negócios, tantas lojas que abriram aqui. Depois, foram embora de volta. E agora estão a voltar! E essa mobilidade da população em escala mundial é uma riqueza para nós todos. O Mandela dizia: “abracem os mais frágeis, pois somos tão fortes quando os mais frágeis estão ao nosso lado”.
Agência Brasil: Como era conviver com Mandela?
Mateus: Ele era extramente cavalheiro. Nunca sentava numa sala se houvesse uma senhora em pé, mesmo nas coletivas de imprensa. Ele ficava em pé até os seguranças arranjarem cadeiras para todas as mulheres da sala. E não passava nunca na frente de uma mulher. Tinha uma noção muito clara de que os valores de atenção aos outros eram o bilhete de identidade, de apresentação dele como ser humano. Ele, ao elevar a dignidade das pessoas com que lidava no dia a dia, criava um ambiente mais propício para as pessoas buscarem o melhor de si mesmas nas relações com os outros.
Agência Brasil: Algo o irritava?
Mateus: Ele dava o melhor de si o tempo inteiro, mas não era hipócrita. Se ele não gostava de alguma coisa, dizia logo que não gostava. Mas dizia de forma cortês, construtiva. Lidava mal com o atraso das pessoas. Afirmava que o tempo era o bem mais precioso de uma pessoa. “Tempo é vida”, ele dizia. Não tolerava atrasos.