Cotidiano

"Estamos arriscando nossas vidas", diz jovem nicaraguense em caravana

Três nicaraguenses ligados a movimentos sociais da país estão no Uruguai e seguem para o Brasil em uma caravana que já passou pelo Chile e pela Argentina, com o objetivo de denunciar a situação de crise que a Nicarágua atravessa, além de pedir apoio ...

Três nicaraguenses ligados a movimentos sociais da país estão no Uruguai e seguem para o Brasil em uma caravana que já passou pelo Chile e pela Argentina, com o objetivo de denunciar a situação de crise que a Nicarágua atravessa, além de pedir apoio da comunidade internacional.

Ariana Mcguire (27 anos), Yader Parajón (27 anos) e Carolina Hernández (36 anos) não se conheciam antes da andança, que começou no dia 8 de agosto. O que os uniu foi o sentimento de que tinham que agir, de que não dava mais para se calar. Yader conta que teme por sua segurança.

“Estamos, no mínimo, arriscando a nossa liberdade. Em última instância, estamos arriscando as nossas vidas”, afirma Yader, que teve seu irmão assassinado em maio deste ano, durante a onda de protestos que ocorre na Nicarágua, desde 18 de abril.

As manifestações no país começaram contra a reforma da Previdência, que acabou sendo revogada diante da pressão social. Mas os protestos contra o governo de Daniel Ortega se intensificaram e houve repressão da polícia e de grupos paramilitares ligados ao governo.

A iniciativa, organizada pela Articulación de Movimientos Sociales y Organizaciones de la Sociedad Civil da Nicarágua, pretende fazer reuniões com atores políticos e de governo, com organizações não governamentais, universidades, organismos de direitos humanos, de estudantes, de mulheres e com a imprensa, para denunciar a situação que ocorre no país e pedir respaldo internacional. Eles seguem para o Brasil na quarta-feira (29), e terminam o percurso no dia 15 de setembro, no Peru.

Yader Parajón, Ariana Mcguire e Carolina Hernández seguem nesta quarta-feira para o Brasil

Yader Parajón, Carolina Hernández e Ariana Mcguire seguem nesta quarta-feira para o Brasil – Marieta Cazarré/Agência Brasil

“A ideia da caravana surge pelo negacionismo do governo da Nicarágua de dizer que a violência, os atos de repressão e assassinatos não estão acontecendo e que tudo era uma mentira de um grupo de direita que queria desestabilizar o governo. Com a falta de segurança e garantias constitucionais que realmente protejam a cidadania, se pensou que a solidariedade internacional, sobretudo de países progressistas ou com história de ditaduras militares, de conflitos armados, de transição democrática, eram uma boa proposta para denunciar internacionalmente toda a crise de direitos humanos que se vive na Nicarágua”, afirma Ariana.

Após o final da viagem, eles ainda não têm claro o que farão. “Já estamos recebendo ameaças, há campanhas de desprestígio, nossos nomes e nossas caras estão saindo na televisão oficialista, já nos têm plenamente identificados, então na Nicarágua o perigo de morte é iminente, é real. Podemos voltar e entrar pelo aeroporto, mas possivelmente vão nos esperar com as forças policiais e nos colocar em uma prisão ilegal de detenção e tortura, ou prender-nos por vinte anos pois, para eles, somos terroristas simplemente por causa desta conversa que estou tendo com você”, afirmou Ariana Mcguire, em conversa com a Agência Brasil.

“E se não nos pegam no aeroporto, os paramilitares desaparecem conosco, nos matam, ou matam nossa família. Sério, estamos em uma situação de risco, de vulnerabilidade, que nos coloca em um limbo geográfico, em um limbo que nunca havíamos experimentado. Não queremos pensar em exílio ou asilo político, porque nosso compromisso e nosso coração está com nosso país, nossa família e nossos amigos e com o processo de resistência que se está dando agora mesmo, mas também não queremos morrer, queremos viver”, afirma Ariana.

O governo de Ortega nega as acusações.

18 de abril

“O 18 de abril na Nicarágua não foi um ponto de partida e, sim, de chegada. Foi a ponta de um iceberg; foi revelar todo um sistema de inconformidades que a sociedade nicaraguense tinha com o governo de Daniel Ortega, que na última década desmantelou todas as instituições públicas, tomou poder da Assembleia Nacional, da Polícia, do Exército, das empresas de comunicação. Mudou a Constituição, mudou as leis… então em um momento ficamos sem amparo jurídico, constitucional”, afirma Ariana.

O dia 18 de abril de 2018 ficou marcado como o momento em que começaram diversos protestos contra o governo do presidente Daniel Ortega. Naquele dia, manifestantes saíram às ruas contra mudanças na Previdência Social. As manifestações cresceram e ganharam novos contornos, inclusive com protestos contra a repressão, a violência e falta de liberdade de expressão. Manifestantes denunciaram ainda abusos e suspeitas de corrupção.

De lá para cá, o país mergulhou em uma profunda crise, com organismos internacionais como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e o Parlamento Europeu tendo manifestado preocupação com a violação de direitos humanos.

Ortega criticou a criação de um Grupo de Trabalho por parte da OEA. Segundo ele, trata-se de “uma política intervencionista” contra seu governo. Ele alega ainda que os Estados Unidos pautam e estabelecem as diretrizes na OEA sobre a crise que ocorre na Nicarágua.

Assassinatos

Foi no contexto de repressão aos estudantes que Jimmy Jose Parajón, irmão de Yader, foi assassinado, no dia 10 de maio. Jimmy estava participando de uma rede de apoio que levava água e alimentos aos estudantes que estavam entrincheirados na Universidade Politécnica da Nicarágua, na capital Managua.

“Na noite de quinta-feira, 10 de maio, havia uma operação ‘limpeza’ orquestrada pelas forças armadas de Daniel Ortega, pelos paramilitares armados, que são inconstitucionais. Meu irmão foi, com um grupo de amigos, levar água para os universitários. Quando chegou à Universidade, tinha acabado de ocorrer um ataque e um estudante tinha sido morto. Depois houve um segundo ataque, com bombas de gás lacrimogêneo, que os cegou e, assim, disparam nele, no lado esquerdo do peito. Ele teve uma hemorragia, lacerou o coração. Tentaram fazer uma assistência médica em um hospital improvisado lá dentro mas, devido à gravidade, foi transferido para o hospital, que fica a 40 minutos de distância. Já chegou clinicamente morto”, desabafa Yader.

Filme de terror

Yader conta que recebeu a notícia por volta da 1h da manhã, em um grupo de whatsapp. “Corri, peguei as chaves e fui para o hospital. Em questão de 5 minutos, sai a doutora e me confirma o falecimento. Era todo um filme de terror. Ele morreu na emergência, nem teve tempo de ser estabilizado e passar para o centro cirúrgico”, relata. Yader, que havia perdido a mãe seis meses antes, faz parte do movimento Madres de Abril (Mães de Abril), que reúne mães e familiares de vítimas.

De acordo com Ariana, os últimos meses deixaram “um saldo de mais de 450 pessoas assassinadas por forças policiais e paramilitares ligadas ao governo; mais de 400 pessoas desaparecidas; mais de 2.800 pessoas feridas ou lesionadas para o resto de suas vidas, que perderam um olho, uma parte do corpo, com balas alojadas pelo corpo; e mais de 150 presos políticos”.

Os números são incertos. Há duas semanas, o governo confirmava 198 mortes. A crise na Nicarágua é considerada a mais violenta desde a década de 1980.

Carolina Hernández, que faz parte do movimento ambientalista, denuncia violações aos direitos humanos e pede a saída imediata do presidente Ortega: “A repressão existe desde sempre, mas o que aconteceu a partir de 18 de abril não tem nome. É um governo autoritário, que tem o poder absoluto do estado. Buscamos, com a caravana, que os países da América do Sul se pronunciem e condenem a grave violação de direitos humanos, os assassinatos. Ortega deixou muitos pais sem os filhos e muitos filhos sem os pais”.

“Precisamos que o mundo saiba a verdade do que acontece na Nicarágua. Ortega criou lei que nos deixam cada vez mais vulneráveis. É urgente que ele saia e deixe o poder, de maneira pacífica pois não queremos mais derramamento de sangue. Somos a voz dos que já não têm voz”, reclama Carolina.

A caravana é a segunda iniciativa deste tipo. A primeira contou com três jovens mulheres que foram à Europa. De acordo com Ariana, a volta delas à Nicarágua foi complicada porque a lei antiterrorismo, recém-decretada, aprovada em 20 de julho, foi utilizada para acusá-las de terrorismo e de financiamento para a produção de armas de destruição em massa.

Há ainda outras duas caravanas sendo planejadas: uma para a América Central e outra para México e América do Norte.