Cotidiano

Defensoria: prisão em flagrante reforça racismo estrutural no Rio 

Levantamento inédito, feito pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, mostra que oito em cada dez presos em flagrante no estado se declaram pretos ou pardos. Essa parcela da população também é mais agredida (40% ante 34,5% de brancos) e tem mais dificuldade de conseguir liberdade provisória (27,4% contra 30,8% de brancos).

Os dados estão em estudo divulgado hoje (5) pelo órgão e serão debatidos às 16h no webinar Cinco Anos das Audiências de Custódia: um olhar sobre o perfil dos presos em flagrante no Rio de Janeiro, com transmissão pelo canal da Defensoria no Youtube.

A pesquisa incluiu 23.497 entrevistas feitas pela defensoria nas audiências de custódia, entre setembro de 2017 e setembro de 2019, com média de 31 audiências realizadas por dia no período analisado. O mecanismo começou a funcionar na capital em setembro de 2015.

Para a coordenadora do Núcleo de Audiências de Custódia da Defensoria, Caroline Tassara, os dados indicam a seletividade racial e social do sistema penal brasileiro.

“A pesquisa traz dados riquíssimos que permitem identificar, a partir da análise de mais de 23 mil casos, quem são as pessoas presas em flagrante no estado do Rio de Janeiro e denunciar a inegável seletividade do sistema penal”.

O levantamento revela também que em mais de 80% dos casos analisados as pessoas foram presas acusadas de furto, roubo ou com base na Lei de Drogas, e que apenas uma em cada três consegue liberdade provisória ou relaxamento da prisão.

Entre os casos analisados, um total de 22.052 tiveram decisão judicial dada na audiência de custódia, sendo 6.432 concessões de liberdade provisória e 203 relaxamentos de prisão. Apenas 49 tiveram a prisão convertida em domiciliar e as demais 15.368 pessoas passaram de prisão em flagrante para preventiva.

Dos casos assistidos pela Defensoria Pública, cerca de um quarto, um total de 3.531 pessoas, tinham condenação judicial anterior. Entre esses, 81,7% continuaram presos após a audiência. Somente 21% tinham passado pelo sistema socioeducativo na adolescência e, entre esses, 76,5% tiveram a prisão em flagrante convertida em provisória.

Perfil

Do total de pessoas levadas às audiências de custódia no estado, 93,6% são homens, 50% têm entre 18 e 25 anos, 39% estavam na faixa de 26 a 40 anos, 78,7% se autodeclararam pretos ou pardos, 64,3% cursaram apenas o ensino fundamental, 91% nasceram no estado e 90,9% disseram trabalhar antes de serem presos, mesmo que informalmente, sendo que 61,7% desses recebiam até um salário mínimo.

Entre os 6% de mulheres levadas às audiências de custódia, mais da metade conseguiram liberdade provisória, contra 30% dos homens, e 12 tiveram a prisão relaxada. O perfil socioeconômico e de acusações das mulheres não difere do encontrado entre os homens. Entre elas, 80% tinham pelo menos um filho e 58,1% das 155 que tinham filhos com até 12 anos receberam liberdade provisória. Outras 6,4% das mães de crianças tiveram a prisão convertida em domiciliar.

Entre os custodiados acompanhados no período pela defensoria constam ainda 54 homens trans e 38 mulheres trans. Em 2.086 casos, a ficha da entrevista não trazia a identificação de gênero.

Agressões

A pesquisa levantou também dados sobre violência policial no momento da prisão. Segundo Caroline Tassara, as entrevistas indicam que houve queda nos relatos um ano depois que as audiências de custódia passaram a ocorrer em todo o estado, com a abertura das centrais em Volta Redonda e em Campos, em outubro de 2017.

“Comparando os dados de 2018 e 2019, observamos que houve uma redução de 23% dos relatos de agressão no momento da prisão, no segundo ano em que as audiências de custódia passaram a ser realizadas no estado todo. Isso confirma, com base em evidências, a efetividade das audiências de custódia como instrumento de prevenção e combate à tortura e aos maus-tratos no momento da prisão. Fica claro o quanto esse instituto promove o avanço civilizatório”.

Das agressões relatadas pelos presos em flagrante, 60% foram praticadas por policiais militares, num total de 3.380 relatos, e 30% por populares, com 1.679. Mais de 80% dos custodiados agredidos eram negros e quase 40% dos entrevistados relataram ter sido fotografados pelos policiais antes da identificação na delegacia.

Entre as mulheres, 22% disseram ter sofrido agressões no ato da prisão, sendo 71,8% delas negras e 23,7% brancas.

Drogas

Segundo a Defensoria, o tipo de crime cometido também tem forte influência na concessão ou não da liberdade provisória. Crimes relacionadas à Lei de Drogas foram as acusações contra 37% dos custodiados, sendo que apenas 19,5% deles conseguiram a liberdade provisória. Entre os 26% acusados de roubo, a liberdade foi dada a 7%, e a proporção sobe para 65,6% entre os 19,3% presos provisórios acusados de furto.

Para o subcoordenador de Defesa Criminal, Ricardo André de Souza, os dados demonstram que há uma política de superencarceramento apoiada na Lei de Drogas e nos flagrantes de tráfico, o que persistiu este ano, durante a pandemia de covid-19.

“A política de drogas é a espinha dorsal da política criminal brasileira, e os dados relacionados ao período de pandemia o demonstram. É fundamental que o debate público possa ser iluminado por dados como os apresentados nessa pesquisa, que conta com enorme banco de dados, talvez único no mundo, no que diz respeito às audiências de custódia”.

A pesquisa destaca que a maioria dos presos em flagrante é acusada de crimes de tráfico e permanece presa após a audiência de custódia, mesmo sendo presos primários. O texto da defensoria afirma que esse fato evidencia “a necessidade de repensar a política de segurança pública que prioriza a apreensão de pessoas em flagrante, muitas vezes pelo local onde se encontram, considerado como dominado por uma organização criminosa ligada ao tráfico, ainda que a quantidade de droga apreendida e nenhuma outra circunstância comprovem a participação nessa organização”.