Cotidiano

Dano moral gera divergência em indenização por tragédia em Mariana

Qual o valor do dano moral causado às pessoas que tiveram seus modos de vida completamente alterados após a devastação causada pela lama que vazou na tragédia de Mariana (MG)?

Exatos quatro anos após o rompimento da barragem da Samarco, essa é uma pergunta que tem gerado dificuldades para fazer avançar as negociações entre os atingidos e a Fundação Renova, entidade criada para reparar os prejuízos causados, conforme acordo firmado em março de 2016 entre a mineradora, suas acionistas Vale e BHP Billiton, o governo federal e os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo.

“A questão do dano geral é a que está gerando mais indignação por parte das famílias”, disse Flávia Maria, coordenadora da assessoria jurídica da Cáritas, organização que dá suporte aos atingidos.

“Não estão levando em consideração diversos danos que foram levantados. Eles colocam um valor fechado e afirmam que não existe possibilidade de majorar o que apresentam. Não deixam muito claro quais os critérios usados e não fazem também menção ao dossiê [elaborado pelas assessorias técnicas dos atingidos] que traz os danos de cada um. Não explicam como chegaram naquele valor. Na proposta que eles apresentam a cada atingido, o dano moral aparece de maneira bem genérica”, acrescentou.

Acordos fechados

Há pessoas atingidas, no entanto, que aceitaram os valores oferecidos. No dia 24 de julho de 2019, foram homologados pela Justiça os primeiros acordos de indenizações com 83 famílias. Segundo a Fundação Renova, de 882 famílias atingidas em Mariana, duzentas já finalizaram as negociações. Significa que 77% ainda não chegaram a um acordo.

Entretanto, estes dados são diferentes dos apresentados pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), que trazem um quadro ainda pior: apenas 151 de um total aproximado de 3,5 mil pessoas atingidas na cidade de Mariana já teriam recebido a indenização.

“Há negociações em andamento. Mas também há atraso da Fundação Renova apara apresentar as propostas”, disse o promotor Guilherme Meneghin.

A Renova sustenta, em nota, que a negociação tem sido voltada para compreender cada caso e indenizar o atingido de forma justa conforme critérios pré-estabelecidos no ordenamento jurídico brasileiro.

Segundo dados da entidade referentes a toda a bacia do Rio Doce e não apenas a Mariana, até agosto último, recursos já foram repassados a 319 mil pessoas, sendo R$ 813 milhões referente a indenizações e R$ 1,02 bilhão de auxílio emergencial mensal. Assegurado a todos os atingidos que perderam suas rendas, esse auxílio não tem natureza indenizatória e equivale a um salário mínimo, acrescido de 20% para cada dependente, além do valor de uma cesta básica.

Dano moral

No caso do dano moral, a Fundação Renova afirma que há equiparação entre todos os que compartilham de uma mesma situação. “O dano moral tem por objetivo compensar todos os sentimentos experimentados pelos atingidos em decorrência da situação de deslocamento físico permanente de suas residências. O modo como cada atingido absorve o que aconteceu varia de pessoa a pessoa e isso faz com que seja impossível chegar a um valor individual ideal de compensação desses danos”, esclarece a nota.

Para poder reclamar seus direitos, os atingidos em toda a bacia do Rio Doce puderam selecionar assessorias técnicas que lhes deram suporte com profissionais de áreas variadas como Direito, Sociologia, Arquitetura, Engenharia, etc.

Essa prerrogativa foi assegurada em diferentes acordos que a Samarco firmou com o Ministério Público Federal (MPF) e com o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG). Uma vez escolhida a entidade pelas próprias vítimas, a contratação é feita com recursos da mineradora e operacionalizada pela Fundação Renova.

A Cáritas foi selecionada para o caso dos moradores de Mariana e, por determinação da Justiça mineira, assumiu ainda a responsabilidade do cadastramento dos atingidos da cidade. Essa é uma diferença no processo de reparação na cidade de Mariana, já que nos demais municípios da bacia do Rio Doce é a  Renova que organiza esse registro.

“Foram levantadas as perdas materiais como as casas, os bens móveis e a interrupção dos rendimentos profissionais. Mas, além disso, foram também evidenciados os danos morais, a partir do relato dos atingidos sobre o que eles sofreram. E este sempre é o dano que eles mais enfatizam. Envolve, por exemplo, a perda dos modos de vida e a saúde física e psíquica. Eles citam muito as relações de vizinhança que perderam, a rotina que tinham nas antigas comunidades e que foi completamente alterada”, explicou Flávia Maria.

Dossiês

A partir do cadastramento, a Cáritas elabora os dossiês destacando os danos causados a cada núcleo familiar. O documento serve de base para a negociação com a Renova. Além disso, a entidade elaborou uma matriz de danos, isto é, uma tabela com a valoração de cada prejuízo causado.

Para estipular cada valor, foram firmados acordos com instituições de pesquisa como o Instituto de Pesquisas Econômicas e Administrativas (Ipead) e o Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar), ambos vinculados à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Mariana (MG) - barragem pertencente à mineradora Samarco se rompeu no distrito de Bento Rodrigues, zona rural a 23 quilômetros de Mariana, em Minas Gerais (Corpo de Bombeiros/MG - Divulgação)

Tragédia começou quando barragem da mineradora Samarco se rompeu no distrito de Bento Rodrigues, zona rural a 23 quilômetros de Mariana, em Minas Gerais  (Arquivo/Corpo de Bombeiros/MG)

O MPMG defendia que as negociações fossem conduzidas a partir dessa matriz de danos. “A Fundação Renova e a Samarco recusaram. Nós entramos com um pedido judicial que foi deferido, fixando os valores estipulados por essas instituições de pesquisa como referência para a indenização. Entretanto, a Samarco recorreu e conseguiu suspender a decisão. Então, até que esse recurso seja julgado, nós não vamos conseguir utilizar essa matriz de danos que estabelece valores justos e tecnicamente fundamentados pelas assessorias dos atingidos”, disse o promotor Guilherme Meneghin.

As diretrizes para o pagamento das indenizações em Mariana estão definidas em um acordo firmado em outubro de 2018 entre o MPMG e a Renova. Nele, ficou estabelecido que a reparação deve levar em conta todos os prejuízos sofridos. Dessa forma, a proposta apresentada aos atingidos tem de considerar danos materiais e morais.

Caso a pessoa discorde dos valores propostos, o acordo estabelece que ele poderá recorrer a um processo de liquidação e cumprimento de sentença, no qual indicará a quantia que acredite ser justa. Nesse caso, o processo vai diretamente para a fase de execução e caberá a um juiz fixar a indenização que terá de ser paga de imediato, pois eventuais recursos não terão efeito suspensivo. “É uma tramitação mais rápida do que uma ação comum”, afirmou o promotor do MPMG, Guilherme Meneghin.

Na visão da Cáritas, mesmo quem tiver assinado acordo tem possibilidade de recorrer ao Judiciário. “Nós entendemos que as propostas que estão sendo apresentadas não quitam todos os danos que os atingidos sofreram e que foram levantados no cadastramento. Então, consideramos que é passível de contestação na esfera judicial, apontando inclusive a violação, já que o indivíduo não tem como de fato negociar”, argumentou Flávia Maria.

Projeção não concretizada

Em outubro de 2018, a Fundação Renova anunciou que pagaria todas as indenizações em Mariana até a primeira metade de 2019, o que não ocorreu. Essa projeção foi feita ao se anunciar o primeiro acordo de indenização. Ele foi fechado enquanto a Cáritas ainda elaborava os dossiês.

A Renova não esperou pelo documento e gerou uma insatisfação da assessoria técnica dos atingidos. De acordo com Cáritas, esta não foi a única negociação conduzida sem que o atingido estivesse amparado pelo seu dossiê. Além disso, a entidade afirmou que, mesmo nos casos com o dossiê pronto, há apontamentos do documento que não estão servindo de base.

Famílias que ainda não chegaram a um acordo final receberam, até agora, apenas adiantamentos referentes ao dano material associado à perda de moradias e carros. Foram pagos, por exemplo, R$ 20 mil para quem perdeu casa. Também receberam indenização os familiares de alguns dos 19 mortos na tragédia. Entretanto, todos estes valores são parciais e serão descontados da indenização final.

Atingidos acreditam que a dificuldade para se obter uma indenização requerida está associada ao modelo adotado para reparar os danos, a partir da criação da Fundação Renova.

“Na prática, quem toma as decisões mais importantes é a Samarco”, disse José do Nascimento de Jesus, que viu sua casa no distrito de Bento Rodrigues ser devastada pela lama e hoje integra a Comissão de Atingidos.

Termo de Ajustamento de Conduta

O Ministério Público Federal também já manifestou avaliações críticas à falta de independência da entidade diante da mineradora e de suas acionistas Vale e BHP Billiton.

Em junho de 2018, foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para alterar a governança da Renova. O TAC Governança, como ficou conhecido, foi negociado entre o MPF e as mineradora para aumentar a participação dos atingidos no processo de reparação. Entre as medidas estabelecidas, estava a mudança no Conselho Curador da Fundação Renova, que passou a ter dois membros indicados pelos atingidos com direito a voto.

Ao todo, são nove membros e seis deles indicados pelas mineradoras. A última cadeira é ocupada por um escolhido pelo Comitê Interfederativo, composto por órgãos públicos, cuja função é fiscalizar os programas de reparação dos danos.

Para a Cáritas, as mudanças no Conselho Curador foram insuficientes para alterar a forma como o processo tem sido conduzido, já que os representantes das empresas continuam sendo majoritários. “Não teve nenhum efeito”, sustentou Flávia Maria.

Outras cidades

O acordo firmado em março de 2016 entre as mineradoras e o poder público considerou inicialmente 39 municípios impactados ao longo de toda a bacia do Rio Doce, mas, posteriormente, foram delimitadas novas áreas de abrangência, o que aumentou esse número para 44.

Considerando todas as cidades, o processo indenizatório mais avançado diz respeito a pessoas que moravam em locais onde o abastecimento de água precisou ser interrompido por mais de 24 horas: 98% já aceitaram as propostas apresentadas.

Entre os pescadores, 8,6 mil já tiveram seu direito à indenização reconhecido pela Renova. Nos últimos meses, teve início uma nova metodologia criada para atender os que não possuíam registro profissional e atuavam de maneira informal. Mas, mesmo entre quem foi registrado e está recebendo o auxílio emergencial mensal, há pessoas que não possuem informações sobre indenização.

“Por enquanto, não trataram disso comigo”, disse Ademar Paulino Sampaio, pescador de Regência, distrito da cidade de Linhares (ES) onde o Rio Doce deságua no oceano.

Nos casos em que fechou acordo com pescadores, a Fundação Renova fixou dano moral em R$ 10 mil. Já o dano material varia de acordo com cada caso. Em algumas situações, os barcos e equipamentos sofreram danos. Além disso, a maior parte do dano material diz respeito aos lucros cessantes, relacionados à renda que o pescador tinha e deixou de ter.

No mês passado, a Câmara dos Deputados divulgou os resultados da visita de uma comitiva da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) a áreas atingidas. Queixas ouvidas em cidades do Espírito Santo envolviam a ausência de reconhecimento para além dos pescadores. “E como ficam os comerciantes, os donos de pousada, de restaurantes, os moradores que são impactados pela lama?”, questionou Fabrício Fiorot, dono de uma pousada que relatou falta de clientes e queda brusca no seu rendimento.