A nova economia chegou e está causando polêmica. Serviços como o Uber, aplicativo para celular que oferece transporte de passageiros; o WhatsApp, que permite troca de mensagens e até ligações gratuitas via internet; e o Netflix, que possibilita assistir a filmes e seriados online mediante uma mensalidade, estão agradando os consumidores e desagradando a concorrência.
Enquanto motoristas de táxi de todo o país estão em guerra contra o Uber, as empresas de comunicação pedem a criação de normas e a tributação de alternativas como o WhatsApp e o Netflix. No caso do aplicativo de troca de mensagens, o fornecimento de serviços de chamada de voz é a principal polêmica. O Ministério das Comunicações é favorável à regulamentação.
Do ponto de vista da concorrência, a existência dessas e de outras opções da chamada economia criativa é positiva, afirma o procurador-chefe do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), Victor Rufino. Ele acredita, entretanto, que a solução para a disputa que se instaurou em torno dos novos serviços não é simples e será necessário diálogo e ânimos mais calmos.
“Nós vivemos em uma época em que a internet está realmente revolucionando diversos setores da economia. A fase em que a gente está hoje é muito mais de entender e ficar absorvendo esse fenômeno do que de ficar prescrevendo soluções. Tem um aspecto que é fundamental, que é o debate transparente e aberto entre todos os envolvidos”, defendeu, em entrevista à reportagem.
Segundo Rufino, a dificuldade em resolver essas questões não é só do Brasil, mas de todo o mundo. O procurador comentou as investigações do Cade sobre atos supostamente ilícitos tanto da parte dos taxistas, quanto do Uber. Na entrevista, Rufino também comenta a atuação do órgão de defesa da competitividade na investigação do cartel das empreiteiras acusadas na Operação Lava Jato.
Reportagem – Os serviços chamados de economia criativa, como Uber, WhatsApp e Netflix estão sendo cada vez mais demandados pelos consumidores. As empresas ou pessoas físicas nos setores da economia em que eles atuam têm dito que se trata de uma concorrência desleal. Mas os consumidores têm alegado direito à livre escolha e dizem que a ameaça à concorrência está do outro lado. Quem realmente está desrespeitando a livre concorrência, na avaliação do senhor?
Victor Rufino – Em geral, você vê a livre concorrência em dois planos. Existe uma questão mais ampla, que diz respeito às condições de acesso a um determinado mercado. Em geral, livre iniciativa, soluções inovadoras, acesso de novos entrantes ao mercado é algo positivo. Normalmente, a concorrência vai se desenvolver a partir de três variáveis: preço, qualidade e inovação. A variável mais interessante é a inovação. Ela supre necessidades que você nem sabe ainda que você tem. Essa seria a dimensão mais ampla do processo concorrencial e da economia de mercado, mesmo. Em uma dimensão mais específica, temos as condições de concorrência. Há isonomia? Há concorrência desleal? A questão tributária está ajustada de forma correta? O peso regulatório que um enfrenta é superior ao do outro? Essas questões vão variar de um mercado para o outro e necessitarão de respostas que vão variar também. A resposta adequada para uma questão de uso de rede para oferecer um serviço que compete com o serviço do dono da rede, por exemplo, vai variar muito das condições daquele mercado, especificamente. Não tem uma resposta unívoca para isso. Não dá para dizer esse está certo e esse está errado. Aí, passa muito mais por uma avaliação mais compreensiva daquele mercado. É importante destacar também que essas questões de ajuste fino, elas passam por uma quantidade distinta de órgãos.
Então, na verdade, a questão ainda carece de uma regulação? Há uma audiência pública sobre o Uber marcada na Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados. Devem discutir também o WhatsApp e o Netflix. O senhor acredita que esse é o caminho?
Eu acho que, melhor do que a gente ficar pensando no resultado, em qual é o resultado mais adequado, no momento o mais importante é pensar no processo e em como a gente vai discutir isso. A gente vai discutir de forma aberta, de forma democrática? Chamar audiências públicas, por exemplo, é positivo. A imprensa conscientizando a sociedade civil, dando destaque, é positivo também. Fazer uma análise crítica, desapaixonada, nem tão a favor porque é novo, mas nem tão contra, é muito mais importante do que já dar um bolo pronto. Esses assuntos são representativos do período que nós vivemos. Vivemos em uma época em que a internet está realmente revolucionando diversos setores da economia. A fase em que a gente está hoje é muito mais de entender e ficar absorvendo esse fenômeno do que de ficar prescrevendo soluções. Tem um aspecto que é fundamental, que é o debate transparente e aberto entre todos os envolvidos. Desapaixonado, sem violência. Esse tipo de debate, eu acho que vai permitir que a gente chegue a uma solução.
Mas o Cade abriu uma investigação para averiguar se ações dos taxistas estão ameaçando a livre concorrência.
Na verdade, o Cade recebeu duas denúncias. Uma de taxistas contra o Uber, por concorrência desleal, e uma dos diretórios centrais de estudantes da UnB [Universidade de Brasília] e do Uniceub [Centro Universitário de Brasília] contra o comportamento dos taxistas de tentar impedir o funcionamento do Uber, através de ações judiciais e do uso da violência, de métodos coercitivos. São duas representações de sinais contrários. O Cade está cumprindo com a sua obrigação, que é coletar provas para analisar se esses atos específicos são ou não ilícitos. Esse processo não vai dizer, em última análise, qual é a regulação adequada para essa questão, nem se o serviço é legal ou ilegal.
O senhor disse que o Cade está cumprindo seu papel nas investigações. Mas não existe uma legislação específica regulando um serviço como o Uber, por exemplo. Como vocês vão avaliar se houve uma lesão à livre concorrência? O que precisa ser constatado para caracterizar isso?
O que a gente vai ver é se as condutas que estão sendo investigadas se enquadram nos dispositivos da legislação de defesa da concorrência. Para isso a gente tem uma jurisprudência, tem uma série de ferramentas. A questão chave é a questão probatória. Você provar a conduta e, dos fatos que estão sendo trazidos, extrair consequências econômicas que são anticompetitivas. A representação dos estudantes acusa duas coisas: a sham litigation, que é o uso de ação judicial descabida para atrapalhar o concorrente, e o método violento. O argumento dos taxistas é que o Uber está se alavancando de uma posição econômica favorável para concorrer deslealmente e tomar mercado deles. A gente vai analisar os fundamentos fáticos e econômicos dessa imputação e se há esse tipo de comportamento por parte do Uber. E se é uma questão de direito da concorrência ou não.
Um argumento dos que defendem o livre uso de aplicativos como o WhatsApp é que, quando você vai comprar um celular, ou contratar um pacote, algumas empresas oferecem esses serviços como atrativos. Há uma operadora de telefonia agora oferecendo um pacote de dados com uso ilimitado do WhatsApp, por exemplo. Não seria um contrassenso essas empresas reclamarem desses serviços, já que elas mesmas lucram a partir deles?
Entendo o ponto. Por que uma operadora de telefonia vai reclamar do Whatsapp se tem um monte de gente que compra o celular para ter acesso e paga aquele plano para isso? Ela quer ganhar ainda mais? No final, é o debate sobre neutralidade da rede. No fundo, é saber o seguinte: eu posso cobrar mais do Whatsapp, porque ele está usando minha rede? Posso segregar o preço para o usuário? Posso dizer, “você usa minha rede, mas para usar o Netflix você vai ter que pagar um pouquinho mais”? É muito difícil dizer quem tem razão. Os provedores de internet têm metas regulatórias. O regulador vai lá e diz que ele tem que fornecer internet por uma velocidade. Ele oferece. De repente aparece algum agente novo, algum aplicativo que as pessoas começam a usar, e tanta gente usa ao mesmo tempo que, para manter a velocidade, ele tem que fazer investimentos enormes. Ele quer receber uma compensação. Essas coisas são tão novas e tocam em tantos aspectos complexos, que não só o Brasil, mas o mundo inteiro está se digladiando com elas. Eu acho que o ideal é que as partes que têm interesse dialoguem e no final o interesse do consumidor seja o mais preservado.
Mudando de assunto, o senhor poderia comentar as investigações do Cade no caso do cartel das empresas acusadas na Operação Lava Jato? A população tem visto bastante da ação policial, dos depoimentos à Justiça, mas é menos difundido que há um cartel sendo investigado.
A área de competência do Cade é olhar para o cartel. Ele não olha questões de propina, questões de corrupção. Há outros órgãos há quem são atribuídas competências para tratar disso. Nós olhamos o acerto de concorrentes para fraudar preços no mercado. Eventualmente, alguns desses acertos envolvem também outros atos que não são da seara do Cade, como pagamento de propina. Normalmente a gente conduz a nossa investigação focada nesse ponto e, se encontra algo relacionado a outros ilícitos, encaminha para quem é competente. A Lava Jato, começamos investigar mais ou menos paralelo [à investigação do Ministério Público do Paraná e da Polícia Federal]. Logo que se começou a investigar lá, veio aqui a Toyo, do grupo Setal [Toyo Setal], e fez uma leniência informando da existência do cartel.
Tanto nesse caso, como no do cartel do metrô de São Paulo, vocês fizeram acordo de leniência. A questão da delação premiada está em destaque agora e, aos olhos das pessoas, parece ser muito nova. Esses acordos funcionam bem? Há quanto tempo o Cade se serve deles para as investigações?
Existe a possibilidade de ser celebrado [acordo de leniência] desde 2003. Fundamentalmente falando, ele não é tão diferente da delação premiada. A principal diferença é que ele é voltado especificamente para cartel e tem essa conotação mais de crimes empresariais. Apesar de pessoas físicas também poderem firmar acordo de leniência, é mais comum que seja feito por pessoas jurídicas. De 2003 para cá, mais ou menos 50 acordos foram firmados e hoje é uma das principais ferramentas de detecção de cartel. Investigações sólidas que a gente têm, cartéis significativos que foram investigados, nasceram dos acordos de leniência. No Brasil e no mundo é bem comum.
Cotidiano