As obras e os investimentos feitos pela União, estado e município do Rio de Janeiro para a Copa do Mundo de 2014 e para a Olimpíada Rio 2016 não mostraram os efeitos desejados em termos de melhoria do acesso da população mais pobre a oportunidades de emprego, saúde e educação. Essa democratização de oportunidades deveria ter ocorrido com a melhoria das redes de transporte urbano, que receberam nos últimos anos investimentos bilionários.
O legado do transporte urbano após os megaeventos esportivos foi tema da tese de doutorado do pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Rafael Pereira, na Universidade de Oxford. Em entrevista à Agência Brasil, Pereira disse que a crise econômica que afetou o estado do Rio logo após os Jogos Olímpicos e Paralímpicos prejudicou ainda mais este legado.
Um desses efeitos foi o aumento do desemprego. Com menos trabalhadores circulando, houve redução do número de passageiros nos ônibus, queda de receita e até falência de empresas do setor. Pereira destacou que, além disso, quando a cidade adiciona nova infraestrutura no sistema de transporte, é necessário reorganizar e racionalizar as linhas de ônibus para não haver sobreposição.
Somados esses dois efeitos – menos passageiros e mudança de linhas e trajetos – ,o pesquisador afirma que “o ganho de acessibilidade que o Rio de Janeiro poderia ter tido não ocorreu, pelo menos no curto prazo”. “Na verdade, entre 2014 e 2017, as condições de transporte urbano de acessibilidade pioraram, apesar dos investimentos. E o que é pior: elas pioraram para as pessoas de mais baixa renda, dos bairros periféricos”, sustentou Rafael Pereira.
Em uma simulação do que teria ocorrido se a cidade não tivesse sido atingida pela crise econômica, a conclusão é que os investimentos feitos em mobilidade teriam contribuído para aumentar o número de empregos e escolas acessíveis à população entre 12% e 14%, em média. “Mas, quando você olha o ganho por faixa de renda e bairros, você vê que os ganhos são muito maiores nos bairros de classe média e alta”.
Aumento da desigualdade
Para Rafael Pereira, quando se faz investimento público, o ideal é que haja alguma eficácia e impacto positivo na melhoria do acesso da população, principalmente para a que mais precisa. “Você expande o leque de oportunidades, expande a liberdade da pessoa em termos das oportunidades que ela consegue acessar em emprego, mais escolas, mais hospitais, mais serviços de saúde. Você expande a área da cidade que é acessível para aquela pessoa, com o mesmo tempo de viagem”.
No Rio de Janeiro, em especial, o pesquisador do Ipea observou que ocorreu o oposto ao impacto esperado sobre a camada mais pobre da população. “E o curioso é que não só foi o oposto do que a gente esperaria do ponto de vista social, mas foi o oposto do que o próprio governo prometeu”. Pereira lembrou que no documento da candidatura da cidade do Rio de Janeiro à sede dos Jogos Olímpicos de 2016, uma das promessas era que a Olimpíada deixaria como legado para a população da periferia gastar menos tempo no trânsito.
O pesquisador deixou claro que os investimentos em mobilidade melhoraram o acesso da população de baixa renda, mas a situação foi ainda melhor para a classe de renda mais alta. “E, em consequência, acabaram aumentando a desigualdade de acesso a oportunidades”. No caso do sistema de transporte público, a igualdade de oportunidades ocorre “no espaço, no chão, no tempo”, indicou. “Para você acessar uma oportunidade, tem que se deslocar xis minutos, xis quilômetros para chegar até lá. E o sistema de transporte público, da forma como foi investido no Rio de Janeiro, aumentou a desigualdade de oportunidades”, reiterou.
Retrovisor x Futuro
Em uma avaliação “ex-post”, ou “olhando pelo retrovisor”, conforme definiu Rafael Pereira, a implementação das políticas na área de transporte gerou, em consequência, diminuição de 4,5% do número de escolas públicas de nível médio acessíveis à população, enquanto o número de empregos formais caiu 6%. O pesquisador do Ipea salientou que se não tivesse ocorrido a crise econômica, os investimentos em mobilidade teriam aumentado em 12% o acesso da população à escola e em cerca de 13,5% ao emprego, em média.
Olhando para a frente, afirmou que quando tiver sido concluído o BRT Transbrasil, que ligará o centro da cidade à estação de Deodoro, na zona norte, onde há alta concentração de população de baixa renda, o impacto dessa obra será bastante significativo, especialmente quando se compara com as obras “olhadas no retrovisor”. A simulação feita utilizou dados oficiais da prefeitura carioca.
“Considerando a mesma medida de acessibilidade que a gente estava olhando na avaliação anterior, só o corredor Transbrasil vai aumentar o número de empregos acessíveis à população em torno de 11,3% para cerca de 58% da população da cidade. Então, 58% da população do Rio, na média, teriam um ganho de 11% de acesso a oportunidades de emprego”. Esse dado varia para as faixas de renda.
Entre 2014 e 2017, o município do Rio de Janeiro teve concluídos os terminais do BRT Transolímpica e do BRT Transcarioca, vias expressas que ligam, respectivamente, o terminal Alvorada, na Barra da Tijuca, zona oeste, à Vila Militar, em Deodoro, zona norte; e a Barra da Tijuca ao Aeroporto Internacional Tom Jobim, na Ilha do Governador, zona norte.
Foram concluídas também a Linha 4 do Metrô e o VLT, rede de veículos leves sobre trilhos que percorre as regiões central e portuária do Rio de Janeiro, conectando todas as demais redes de transporte metropolitano. Com isso, reduziu-se o ritmo de construção do BRT Transbrasil para priorizar os demais projetos, apontou Rafael Pereira.
O pesquisador informou que, ao contrário do que ocorreu com os projetos construídos entre 2014 e 2017, o BRT Transbrasil vai ter, no futuro, quando terminarem as obras, um impacto progressivo. Se na média o ganho foi 11% para a população geral, para a população de mais baixa renda o ganho alcança quase 20%. Para a população de renda mais alta, o ganho previsto é inferior a 5%.
“Todo mundo ganha com essa obra, obviamente, mas o ganho maior é para a população de baixa renda. Essa obra, em particular, tem um grande potencial, e um potencial progressivo”, enfatizou. Segundo Pereira, o que torna o potencial do BRT tão alto é que o traçado dessa via corre por uma das áreas de mais alta população de renda baixa da cidade e facilitará muito o acesso direto dessas pessoas ao centro do município.
Metrô
O pesquisador do Ipea chamou a atenção para o fato de os investimentos para a construção da Linha 4 do Metrô atingirem no fim de 2016 e início de 2017 cerca de US$ 3,11 bilhões, contra custo de US$ 480 milhões do BRT Transbrasil. Nesse período, o dólar estava cotado a R$ 3,12. A análise da Linha 4 do Metrô revela que a obra foi muito cara, uma vez que representou uma extensão da linha já existente na zona sul até a Barra da Tijuca, na zona oeste. Além disso, o maior beneficiário desse projeto foi a população de mais alta renda.
Dois motivos explicam isso, segundo Rafael Pereira. O primeiro é a localização. “Você está ligando um bairro rico a outro bairro rico”. O segundo motivo é a questão tarifária, uma vez que o modal metrô não é dos mais baratos na cidade e não existe integração tarifária ônibus/metrô. “No final das contas, a Linha 4 do Metrô foi um dos maiores investimentos que o Brasil fez em termos de transporte público nas últimas décadas e, no entanto, foi o que menos beneficiou a população de baixa renda, que mais precisa de transporte público”.
Para melhorar a situação da população de baixa renda, o pesquisador do Ipea defendeu, no curto prazo, a integração tarifária e a revitalização do sistema de trens urbanos, onde já existe uma rede consolidada, mas faltam investimentos. Somado a isso, existe a necessidade, no médio e longo prazo, como projeta o plano diretor do município, de desconcentrar as atividades econômicas do centro do Rio.