Cotidiano

Violência e invisibilidade marcam realidade de lésbicas no Brasil

O apagamento – ou invisibilidade - dentro do próprio movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (LGBT), o machismo e a violência estão entre os obstáculos que o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, comemorado hoje (29), tenta enfrentar. ...

O apagamento – ou invisibilidade – dentro do próprio movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (LGBT), o machismo e a violência estão entre os obstáculos que o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, comemorado hoje (29), tenta enfrentar.

A data remete à realização, em 1996, do 1º Seminário Nacional de Lésbicas, que tratou da ocorrência de violações de direitos dessa população.Em 22 anos, a temática lésbica ganhou mais espaço no debate público, mas ainda há  preconceito, violência e exclusão social, econômica e política dessa população.
 

Rio de Janeiro - A 22ª edição da Parada do Orgulho LGBT (Lésbicas, Gays , Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) leva milhares de pessoas à Praia de Copacabana (Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Parada do Orgulho LGBT – Tânia Rêgo/Arquivo Agência Brasil

“A gente queria festejar o dia da visibilidade como um dia da conquista de direitos. Ainda não está sendo possível fazer isso”, disse a coordenadora-geral do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos LGBT, Kátia Guimarães.

Lesbocídio

Lançado em abril, o primeiro Dossiê sobre Lesbocídio no Brasil mostra crescimento vertiginoso do assassinato de mulheres lésbicas nos últimos anos. O documento indica que, no período entre 2000 e 2017, foram registrados 180 homicídios de lésbicas, das quais 126 ocorreram entre os anos de 2014 e 2017. 

O dossiê foi elaborado pelo Grupo de Pesquisa Lesbocídio – As histórias que ninguém conta, que atua no resgate de informações e histórias de lésbicas vítimas desse tipo de crime no país.

Para elaboração do documento, os dados foram obtidos a partir do mapeamento de redes sociais, portais na web, jornais eletrônicos e outros meios de comunicação que fossem expressões de notícias criminais nacionais, regionais e locais, buscando a identificação dos casos de lésbicas assassinadas ou que cometeram suicídio.

“A visibilidade que a gente queria não era essa. Não queremos estar nas páginas policiais, com um corpo caído no chão, ou o suicídio como falta de alternativa de vida”, afirmou Kátia Guimarães.

Estatísticas

Apesar do mapeamento da violência lesbofóbica, feito a partir de pesquisas acadêmicas, não há estatísticas oficiais que mostrem a extensão do problema, pois há uma série de entraves que impedem o registro e a notificação das mais distintas formas de violência.

De acordo com os estudos, as dificuldades estão na ausência de institucionalização do sistema de registros e notificações de mortes e das modalidades de violências de forma pública, assim como a falta de capacitação e preparo dos agentes do Estado para tratar o tema.

“O aumento dos registros e das notificações por meio de mídias digitais não necessariamente é resultado direto do aumento de casos de lesbocídio no Brasil, ele pode significar, sim, o aumento dos casos reais, como também pode significar apenas o aumento do número de notificações (…)”,diz um trecho do Dossiê sobre Lesbocídio, ao analisar os dados.

Em seguida, o texto afirma que “dificilmente qualquer organização ou grupo terá capacidade de chegar próximo aos números reais dos casos no Brasil”.

Demanda

Para Claudia Macedo, integrante da Associação Lésbica de Brasília – Coturno de Vênus, a principal demanda do movimento na atualidade é justamente a obtenção de estatísticas reais. “Sem informações sobre a população lésbica, como é que se pode desenvolver políticas públicas específicas?”, questionou.

Considerando a “ausência do Estado”, a Coturno de Vênus lançou recentemente o “Lesbocenso”, iniciativa que visa a coletar informações censitárias das lésbicas que vivem no Distrito Federal.

O Lesbocenso se baseia em um formulário, disponível na internet, que reúne dados, como faixa etária, raça/etnia, emprego, religião, grau de intrução, acesso à saúde e índices de violência. Até o momento aproximadamente 800 pessoas responderam.

Claudia Macedo disse que os números ainda não refletem a população lésbica em termos absolutos, mas permitem uma amostragem da realidade.

Amostragem

Pela amostragem, mais de 80% das pessoas que responderam ao questionário afirmam ter sofrido algum tipo de violência lesbofóbica, como assédio, agressões físicas e psicológicas. O levantamento mostra também que 40% das entrevistadas estão desempregadas, um número bem acima da média geral da população economicamente ativa no Brasil, que figura em torno de 12%.

“Nesse indicador, as que são consideradas fora do padrão do que deveria ser a ‘mulher feminina’ são quase sempre as mais prejudicadas em uma entrevista de emprego”, afirmou Claudia Macedo. Esse perfil, das lésbicas “não feminilizadas”, também responde pela maioria (55%) das mortes registradas no Dossiê sobre Lesbocídio no Brasil, entre 2014 e 2017. 

Segundo Kátia Guimarães, também é preciso aprimorar as ferramentas existentes, como o Disque 100, do Ministério dos Direitos Humanos, que também registra os casos de violência com recorte lesbofóbico. “Está prevista uma oficina nacional em setembro pra gente debater formas de dar maior divulgação ao Disque 100 e, sobretudo, para ter maior agilidade no acompanhamento e retorno dos casos. Quem sofre violência precisa de respostas rápidas em relação às denúncias feitas”, argumentou. 

Paradoxalmente, a invisibilidade lésbica ocorre no momento em que o movimento conquista uma vitória importante. No início do mês, o Congresso Nacional aprovou uma mudança no Código Penal para tipificar o crime de importunação sexual.

O projeto de lei também incluiu uma tipificação específica para o chamado “estupro corretivo”, praticado com a finalidade de controlar o comportamento da vítima. “Esse é o crime de estupro que tem como alvo as lésbicas, mas a divulgação do projeto na mídia focou quase que totalmente na questão da importunação sexual no transporte público”, observou Evelyn Silva, ativista da Coturno de Vênus. 

Saúde lésbica

Um dos desafios da população lésbica é garantir acesso à saúde que leve em consideração a especificidade dessa orientação sexual. Na questão ginecológica, por exemplo, toda a atenção está calcada na heteronormatividade.

“Se você informa ao médico que só mantém relações sexuais com mulheres, é considerada sem vida sexual ativa, e isso tem uma série de implicações para a saúde”, disse Kátia Guimarães. 

Claudia Macedo afirmou que até a atenção dispensada pelo profissional de saúde à lésbica é inferior, se comparado à heterossexual: “A duração de atendimento é menor, a ausência de cuidado é maior. Há pesquisas que falam que o índice de câncer do colo de útero é maior em mulheres não heterossexuais justamente porque não há acompanhamento adequado dessa parcela.”

De acordo com as ativistas, casos de problemas de saúde mental da população lésbica têm aumentado. Dados coletados pelo Dossiê sobre Lesbocídio mostram que, mesmo longe de representar a totalidade, 33 lésbicas cometeram suicídio no Brasil entre 2014 e 2017.

“A pressão da família, a rejeição da sociedade e a perspectiva de não ver futuro é algo que está batendo na população LBGT em geral, sobretudo na população lésbica, de forma específica”, disse Kátia Guimarães.