ARTIGO | POLÍTICA

Neoliberalismo: revolução reacionária

Artigo comenta frase de professor da USP, que aponta a extrema-direita como uma força revolucionária, e debate como esse processo ocorre

Foto: Luis Eduardo de Oliveira / @islu.ed
Foto: Luis Eduardo de Oliveira / @islu.ed

Dia desses li uma entrevista do professor de filosofia da USP, Vladimir Safatle, onde ele sintetiza suas ideias com uma frase curta, mas significativa: “A extrema-direita é a grande força revolucionária de hoje”. O comentário dá conta de que a esquerda, antes a principal força de oposição à ordem, tornou-se hoje o vetor de manutenção da democracia liberal. Assim, à medida que, estando no poder e não acabando com as mazelas do neoliberalismo, quem ontem representava a revolta entrega essa potência de mudança na mão do inimigo.

Para Safatle, vencer uma eleição não significa sair como ganhador da disputa política. O filósofo argumenta que, uma vez que alguém adota o palavreado do opositor, está sinalizando que perdeu. E esta situação está dada no Brasil de hoje. Passadas as eleições de 2022, que puseram fim ao processo gerador de extremo sofrimento que representou o bolsonarismo, vê-se muita dificuldade em fazer andar pautas que realmente ofereçam melhora nas condições de vida da classe trabalhadora.

Ontem (16), no apagar das luzes (literalmente), a Câmara dos Deputados aprovou a Lei Geral do Licenciamento Ambiental, chamada por ambientalistas de “PL da Devastação”, que, sob argumento de conseguir “desburocratizar” processos, muda o modo como se dá a obtenção de licenças ambientais no Brasil. Porém, de acordo com o próprio Ministério do Meio Ambiente, além de outros importantes órgãos ambientais, o texto abre espaço para sérios riscos ambientais, impunidade e desproteção de comunidades tradicionais.

Ou seja, a medida, entre outras, sinaliza a impotência do governo diante do avanço da destruição capitalista no País. Destruição esta que é o modus operandi do neoliberalismo, e que passo a passo ganha uma versão verde-amarela.

Antes de continuar, advirto o leitor que não sou um especialista, me limito a ser um jornalista curioso quanto ao que tem a dizer pessoas com formação nas diferentes áreas do saber, e que comento apenas minhas percepções, que não necessariamente são as de todo mundo. Dito isso, costuma-se falar em três tendências no mundo capitalista atual: a “financeirização” do mundo, um estímulo sem senso crítico ao uso da tecnologia, e, por fim, uma apologia ao primitivismo das tradições culturais. Estas duas últimas ainda não as mencionei em nenhum artigo dessa coluna, e creio que merecem atenção especial.

Na recente campanha presidencial, Donald Trump falou em uma “Revolução do senso comum” nos EUA. A frase possui um duplo sentido: como se apelasse para a vida diária dos estadunidenses, para as tradições, para algo ao qual eles estivessem habituados. Dessa forma, porém, a vitória de Trump foi também uma derrota daquilo que representa a novidade, a transformação, aquilo que não é familiar ao cidadão médio. E, paradoxalmente, tudo isso foi dito diante dos principais donos das Big Techs, que até pouco tempo representavam a esperança não só da transformação econômica, mas cultural, e hoje são apologistas do mais alto reacionarismo.

O Brasil não está fora disso. Basta ver, tanto na internet como em meios antigos, noticiários, propagandas, conteúdos de entretenimento. É muito comum ver nesses materiais um apelo para ícones que já estavam em uma dada cultura há tempos, principalmente associados a discursos tradicionais, muitos deles preconceituosos, e que possuem algum nível de engajamento junto à população. Agora eles aparecem vinculados a materiais típicos do capitalismo atual, como casas de apostas, bancos privados, o agronegócio, e por aí vai.. Logo, se constatamos que é esse sistema econômico que está destruindo não só os recursos naturais, mas também o próprio o Estado como o conhecemos, é possível dizer não só que Safatle acerta na frase, mas também que é a própria cultura, naquilo que está no coração dela, que está contribuindo na operação desse processo.

Daí a paradoxal “revolução reacionária”. Ela se apóia no cerne da cultura para desfazer seu aparato institucional, favorecendo assim a maximização dos lucros. O resultado na vida diária é bem perceptível. Um processo que vai desde a alienação da infância através do uso excessivo dos celulares, até o surgimento do herói empreendedor como uma única solução lógica para lidar com um sistema que oferece menos alternativas a cada dia.

Estava relendo os “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade” (1901-1905), de Sigmund Freud, e, para além das questões datadas do livro, o cerne do argumento, de que, desde cedo, a criança é alguém dotado de impulsos, ainda é válido. Entende-se também como existe uma linha evolutiva entre a infância e a idade adulta, cada vez mais fonte de embate político. Pois é na infância que uma pessoa forma a sua pré-história, seu pertencimento àquela cultura, aspectos que serão determinantes para o desenvolvimento de suas ações.

E, aparentemente, o capitalismo atual, na sua face radical, compreendeu isso. Para estar de posse do primitivo é preciso agir desde cedo, romper a fronteira dos lares, da escola, da comunidade como um todo. Assim, a “revolução reacionária” impõe um desafio contrário à esquerda: como ser uma espécie de “vanguarda conservadora”, sem cair nas armadilhas de tornar-se um novo sistema opressor?

Abriu-se uma janela no Brasil dia desses, com o tarifaço de Trump. A popularidade do governo Lula aumentou diante da possibilidade de parte do setor privado nacional perder seus lucros. Quem sabe, diante de tantos fluxos avassaladores do Capital, não surja o espaço da inflexão crítica, nas nossas cabeças aqui no Sul Global.