Só sabia olhar para si. Vivia assombrado por criaturas que pareciam monstros de carne e osso, prestes a ceifá-lo. Ódio, medo, controle. Horror. Abria a porta, mas tinha medo do ar e da luz, então logo a fechava. Breu interior. Desconexão.
Um dia, a máquina se traiu. Pânico. Estava exposto ao sol, e a luz ardia. Os olhos e os ouvidos do mundo o procuravam em todas as suas minúcias. Mas entre órgãos com sentidos tão aguçados, também mãos se estenderam.
Viu que os monstrinhos eram fantasmas que sumiam ao ver o sol. Estava desassombrado de si mesmo. Os dias passavam e percebia pouco a pouco o Outro que habitava dentro. Com um olhar não inquiridor, mas sim a interpelar a verdade do nosso amor.
O Outro redesenhou seu corpo. Com uma multiplicação de vozes a vibrar eletricamente em todos os pontos de reverberação. Pele, estômago, coração, cérebro. Metafísica da carne.
O olhar sabe e as mãos dadas se escutam. Que universo é esse? Conforme se dão mais tempo e mais silêncio, todo um cosmos assume o primeiro plano. Descobriu um mundo entre o ruído e a música. Duas vidas, dois vazios, na desaceleração do mundo.
É isso que aquele olhar lhe disse: que isso lhe faltava, e que isso era ele. E era ótimo ter onde ecoar e ver o quanto é bom estar inteiramente incompleto. “Obrigado por me ver”, disse.