No Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados, instituído desde 2011 pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 30 de agosto, a coalização de organizações de direitos humanos e segurança pública Fórum Grita Baixada chama a atenção para a falta de caracterização do crime no Brasil. O fórum foi criado em 2012 e reúne diversas entidades com atuação na Baixada Fluminense, região com altos índices de violência e de violações dos direitos humanos.
O coordenador executivo do Fórum, Adriano de Araujo, explica que o desaparecimento forçado de pessoas é um crime hediondo e a caracterização e inclusão no código penal é fundamental para que o Estado possa enfrentar “essa chaga que atinge os mais pobres, os moradores de periferias como na Baixada e, fundamentalmente, a juventude negra”.
“É urgente a tipificação e a disponibilização dos dados referentes a essa categoria no bancos de dados e registros públicos. É o básico para um país que reconhece o crime de desaparecimento forçado como um crime contra a humanidade e fundamental para um diagnóstico mais próximo da realidade que serviria como instrumento para a elaboração de políticas públicas específicas para esses casos”.
De acordo com dados apresentados no fim do ano passado em audiência pública na Assembleia Legislativa do estado do Rio (Alerj), de janeiro a agosto de 2019 a Delegacia de Descobertas e Paradeiros (DDPA) registrou 1.427 pessoas como desaparecidas somente na capital. Do total, 1.157 foram encontradas, 20 foram encontradas mortas e 250 casos não tinham sido solucionados.
Os dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) registram de janeiro a julho deste ano 1.859 pessoas desaparecidas no estado do Rio e Janeiro e 4.768 em todo o ano passado. Foram encontrados 171 cadáveres e 14 ossadas nos sete primeiros meses de 2020. Em todo o ano passado, foram 298 corpos e 51 ossadas.
Desde 2014 o Rio de Janeiro conta com uma delegacia especializada em descoberta de paradeiros, mas não há registro específico para os casos de desaparecimentos forçados. A reportagem da Agência Brasil solicitou dados atualizados para a Polícia Civil sobre a resolução dos casos de desaparecimentos registrados e sobre o entendimento institucional a respeito do desaparecimento forçado, mas não obteve resposta.
Adriano destaca que o fortalecimento da política do confronto na guerra às drogas facilita a prática do desaparecimento forçado e privilegia a impunidade de quem pratica. “Não é a tipificação do crime de desaparecimento forçado que irá resolver, mas a compreensão desse crime de estado que remonta ao nosso triste período de exceção da ditadura civil militar, só que agora dirigida não a presos e opositores políticos, mas aqueles já violentados pelo Estado em outras instâncias”.
Direito Internacional
A Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado foi aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2006 e está aberta à ratificação pelos estados membros desde 2007, entrando em vigor em dezembro de 2010. O Brasil promulgou a Convenção por meio do decreto nº 8.767, de 2016.
O texto da Convenção (disponível aqui em inglês) define como desaparecimento forçado “a prisão, detenção, rapto ou qualquer outra forma de privação de liberdade por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas agindo com a autorização, apoio ou aquiescência do Estado, seguido pela recusa de reconhecer a privação de liberdade ou a ocultação do destino ou paradeiro da pessoa desaparecida, que colocam tal pessoa fora da proteção da lei”.
Segundo o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (Acnudh), atualmente mais de cem países já assinaram a convenção, sendo 63 como estados parte, inclusive o Brasil, e 48 signatários.
Código Penal
No Brasil, o desaparecimento forçado não está tipificado no Código Penal, mas a proposta foi incluída no texto em debate no Congresso Nacional, o Projeto de Lei do Senado n° 236, de 2012. No projeto, é incluído no Código Penal todo um título sobre os crimes contra os direitos humanos, inclusive o desaparecimento forçado de pessoas.
No texto original da proposta, esse crime se configuraria por “apreender, deter ou de qualquer outro modo privar alguém de sua liberdade, ainda que legalmente, em nome do Estado ou de grupo armado ou paramilitar, ou com a autorização, apoio ou aquiescência destes, ocultando o fato ou negando informação sobre o paradeiro de pessoa privada de liberdade ou de seu cadáver, ou deixando a referida pessoa sem amparo legal”.
A relatoria na Comissão de Constituição e Justiça é do senador Rodrigo Pacheco (DEM/MG) e não há movimentação na matéria desde fevereiro deste ano.
Adriano de Araujo lembra de casos como o desaparecimento de opositores políticos durante a ditadura militar e também do ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza, desaparecido após ser levado a uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) em 14 de julho de 2013. Esse caso culminou na condenação de 12 policiais militares por tortura e ocultação de cadáver. Para ele, é importante que o crime seja caracterizado e as estatísticas produzidas.
“Propusemos a inclusão da categoria desaparecimento forçado nas estatísticas produzidas pelo Instituto de Segurança Pública. Afinal, o que não é registrado e sistematizado acaba por não contribuir para a objetivação de um fenômeno social. Não é somente uma preocupação estatística, mas uma questão de visibilidade dessas mortes provocadas por agentes públicos”.
Esperança
O que move a família de uma vítima de desaparecimento é a esperança. Se a pessoa não for encontrada com vida, ao menos o corpo ajudaria a aplacar a dor da ausência. É o que relata Maria Batista, doméstica moradora de Madureira, na zona norte do Rio de Janeiro, que procura pelo filho há cinco anos.
Em maio de 2015, o filho de Maria, Vagner, então com 38 anos, saiu do trabalho em um restaurante no Méier, na zona norte do Rio de Janeiro, e foi com um amigo para Campo Grande, na zona oeste. Os dois beberam algumas cervejas e o amigo foi para casa. Vagner ficou no ponto de ônibus e nunca mais foi visto.
“Não tivemos notícia nenhuma. Fizemos o boletim de ocorrência na Cidade da Polícia, mas até hoje não temos informação nenhuma, se foi levado por algum grupo, se caiu e bateu a cabeça. Até hoje não apareceu nada. É uma busca constante e uma dor muito grande, não tem nem como explicar”, diz Maria.
Para ajudar a remediar a dor, Maria participa de um grupo de apoio de familiares de pessoas desaparecidas, o Mães de Braços Fortes. Apesar de a polícia ter considerado o caso encerrado depois de três anos sem pistas sobre o paradeiro de Vagner, a família continua na busca.
“A gente continua procurando o que houve, se aparece algum indício. Encontrar pelo menos o corpo, alguma coisa. Já procuramos, fomos em necrotérios, hospitais, casas de recuperação. Nosso grupo já achou pessoas com 42 anos de desaparecido. Por isso que a gente não desiste”.
Adriano de Araújo explica que a Convenção das Nações Unidas define não apenas a pessoa que está desaparecida como vítima nesse crime, mas “todo indivíduo que tiver sofrido dano como resultado direto de um desaparecimento forçado”. “Nesse sentido, é fundamental destacar que o mesmo artigo acolhe o direito das famílias de saber as circunstâncias do desaparecimento, dos resultados da investigação e o destino da pessoa desaparecida”, lembra o coordenador do Fórum.
Nossos mortos têm voz
O tema dos desaparecimentos forçados é tratado no documentário Nossos Mortos Têm Voz, dos diretores Fernando Sousa e Gabriel Barbosa, que acabou de ser selecionado no 3º Concurso de Documentários da TV Câmara para ser exibido na emissora legislativa nacional, junto a outras 29 produções independentes.
Fernando Sousa destaca a importância de levar a público os casos de desaparecimentos forçados e outros temas importantes, como direitos das mulheres e meio ambiente, ampliando a visibilidade com a exibição na emissora.
“São filmes de todas as regiões do Brasil que vão enriquecer a programação da TV Câmara, uma TV pública, isso reforça a importância da TV pública na valorização do cinema e do audiovisual brasileiro. É muito importante esse tipo de iniciativa, não só pelo Nossos Mortos Têm Voz, mas por trazer uma série de documentários com temáticas muito atuais e urgentes para o debate na sociedade brasileira”.
O filme Nossos Mortos Têm Voz, lançado em 2018 pela Quiprocó Filmes, é apresentado pelo Fórum Grita Baixada e pelo Centro de Direitos Humanos de Nova Iguaçu. O documentário parte do caso do desaparecimento do jovem Fabio Eduardo Soares Santos, aos 19 anos de idade, em 2013 em Queimados, na Baixada Fluminense, depois de ter sido abordado por um policial. Seu paradeiro continua desconhecido.