Cotidiano

Cepal e FAO propõem auxílio contra a fome na América Latina e Caribe

A América Latina e o Caribe, fortemente afetados pela pandemia do novo coronavírus, devem ultrapassar este ano a marca de 83 milhões de pessoas na pobreza extrema. A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) e a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) propõem, além de uma renda básica de emergência para as pessoas pobres, um auxílio contra a fome para todos aqueles que vivem nesta situação.

A proposta, feita nesta sexta-feira (16) em uma conferência de imprensa virtual, visa evitar que a crise sanitária se transforme em crise alimentar. Nos últimos meses, os países da região vêm registrando um aumento no número de pessoas abaixo da linha da pobreza e uma redução do Produto Interno Bruto (PIB) per capita. As estimativas mostram que a região deve terminar 2020 com 215 milhões de pessoas na pobreza e mais de 83 milhões na extrema pobreza.

De acordo com a secretária executiva da Cepal, Alicia Bárcena, a criação de um auxílio contra a fome é uma das duas grandes propostas do organismo, juntamente com o incremento nos subsídios às pequenas e médias empresas agrícolas e alimentares, especialmente às empresas familiares, para garantir a cadeia de produção de alimentos.

“Já fizemos a proposta uma renda básica de emergência (IBE – Ingreso básico de Emergência, em espanhol), pelo período de seis meses, e pensamos que é urgente complementar com a entrega de um auxílio contra a fome. Esse auxílio poderia ser em forma de transferências monetárias, cestas básicas ou cupons de alimentos para toda a população em situação de pobreza extrema. Ou seja, devemos dar a esses 83,4 milhões de pessoas o auxílio contra a fome, porque não é um problema no fornecimento de alimentos, não temos problema na cadeia, por enquanto. O problema é que os lares não têm renda suficiente para adquirir alimentos”, afirmou Alicia.

O auxílio contra a fome proposto pelos organismos seria entregue durante seis meses. O custo desse benefício seria de 0,45% do PIB regional se fosse direcionado a todos os mais de 83 milhões de pessoas em pobreza extrema. Ou seja, seriam disponibilizados, de acordo com a Cepal, US$ 23,5 bilhões, que seriam pagos em parcelas de US$ 47 (valores de 2010). Caso o auxílio fosse direcionado apenas às pessoas com mais de 65 anos, o custo seria de 0,06% do PIB, ou seja, US$ 2,9 bilhões.

O segundo pacote proposto pela Cepal diz respeito ao aumento da oferta de créditos mais flexíveis e de investimentos não reembolsáveis para o setor produtivo agropecuário. Alicia explica que essas medidas evitariam falhas em cascata e manteriam a cadeia de pagamentos funcionando.

A ideia seria injetar US$ 5,5 bilhões em linhas de crédito para pequenos, médios e grandes produtores, através de bancos de desenvolvimento nacionais e internacionais, com garantias, seguros e outros incentivos. Quanto aos fundos não reembolsáveis, o objetivo seria facilitar US$ 1,7 bilhão para propriedades agrícolas. O benefício seria pago em uma parcela única de US$ 250 para unidades de exploração agrária, para adquisição de fertilizantes, sementes e outros insumos. A medida garantiria que cerca de 6,8 milhões de fazendas (unidades de exploração agrícola) recebecessem um investimento básico. As duas propostas somariam US$ 7,2 bilhões, dos quais 76,4% seriam destinados a créditos e 23,6% a subsídios produtivos.

As propostas têm três objetivos centrais. O primeiro é apoiar as pessoas, garantindo o acesso aos alimentos. O lugar é apoiar produtores e empresas, para que sigam operando, e o terceiro, apoiar as cadeias produtivas para assegurar um funcionamento fluido de todo o sistema de produção e distribuição de alimentos.

Para o vice-diretor geral da FAO e representante regional para a América Latina e Caribe, Julio Berdegué, a região está diante do risco iminente de aumento da fome e da extrema pobreza. “A América do Sul é um grande produtor mundial de alimentos, um dos pilares da segurança alimentar global e, no entanto, é onde está mais da metade das pessoas que vivem em condição de fome na região”, disse Berdegué.

“Não é apenas que as pessoas deixam de comer o suficiente quando temos um choque como o que estamos experimentando em consequência da pandemia, mas também que as pessoas passam a ter dietas mais baratas e menos nutritivas, com mais gorduras, açúcares e sódio, e menos frutas, verduras, lácteos e proteínas – porque é uma dieta mais barata. Isso gera consequências muito sérias em uma região como a América Latina, que lamentavelmente já é líder mundial em sobrepeso, obesidade e má nutrição”, acrescentou.

Berdegué afirmou que a situação deve agravar-se ainda mais e ressaltou os impactos da cise sobre o emprego feminino. “Centenas de milhares de mulheres trabalham nas empacotadoras, na produção de flores, na colheita de frutas e verduras, e seus empregos estão em risco. Isso é muito preocupante.”

Sobre a dieta escolar, Berdegué ressaltou as diversas medidas tomadas pelos da região para garantir o acesso das crianças aos alimentos durante a crise.

“Fecharam-se as escolas em toda a América Latina e Caribe para evitar que as crianças se contaminassem, mas as escolas não são só escolas, são lugares onde 84 milhões de meninos e meninas comem todos os dias. E, para 10 milhões deles, é a principal refeição. Muitos países fizeram esforços para manter vivo o sistema de alimentação escolar, inventando alternativas criativas e inteligentes para repartir as cestas às famílias. Antes, a criança ia à escola e lhe davam a bandeja com sua comida. Agora lhe dão uma caixa, que está pensada para uma criança e, muitas vezes, alimenta toda a família, que está sem renda”, disse o representante da FAO.

Quanto ao Brasil, Berdegué destacou que, do ponto de vista alimentar, é um país central. “O crescimento no número de pessoas contagiadas, doentes e falecidas [pela covid-19], por sorte ainda não mostrou impacto sobre o sistema de alimentar brasileiro. Se isso chegasse a acontecer, as consequências seriam de enorme gravidade, para o Brasil, para a região e para o mundo. O Brasil, que é um país exemplar na luta contra a fome, não deve retroceder em uma conquista de todo o povo brasileiro. É fundamental que se mantenham os programas de apoio à agricultura familiar, de compras públicas da agricultura familiar, de alimentação escolar, etc. É todo um conjunto de medidas e programas que tinham se convertido em um modelo que muitos países olhavam com interesse.”

Para Alicia Bárcena, o Brasil foi um grande exemplo. “A experiência do Fome Zero, de fato, foi levada a outros países com muito sucesso e foi inclusive adotada em nível global. Em relação à pandemia, devemos reconhecer que o Brasil implementou vários mecanismos de manutenção de renda e linhas de apoio às empresas. O governo manifestou que o pacote de ajuda fiscal chega a 12% do PIB, o que é muito alto, mas não há dúvida de que não implementou as mesmas políticas de contenção e isolamento que o resto da região, e isso também tem consequências.”