Agendado para começar hoje (16), o julgamento do primeiro dos quatro réus indiciados por homicídio no processo criminal que apura o incêndio da Boate Kiss foi suspenso e não tem data certa para acontecer. Duzentas e quarenta e duas pessoas morreram e 636 ficaram feridas na tragédia ocorrida em 2013, em Santa Maria.
Na última quinta-feira (12) à tarde, o TJ-RS (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul) ainda ajustava os preparativos para que o produtor musical Luciano Bonilha Leão comparecesse perante o júri esta manhã. Cinquenta jornalistas de vários veículos estavam cadastrados para cobrir o julgamento, previsto para durar de três a cinco dias.
Diante do interesse que o caso desperta, medidas para limitar o número de presentes e evitar o risco de propagação do Covid-19 (novo Coronavírus) tinham sido aprovadas. Duzentos e cinquenta assentos do Centro de Convenções da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria) estavam reservados para parentes das vítimas e dos acusados.
O anúncio veio tarde da noite do mesmo dia. Por volta de 23h, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) tornou pública a decisão do ministro Rogerio Schietti Cruz. A pedido do MP-RS (Ministério Público estadual) e de parentes das vítimas, o magistrado suspendeu o julgamento até que a Justiça gaúcha se manifeste sobre o pedido de desaforamento (transferência) do júri, ou seja, defina onde o julgamento deve ocorrer, se em Santa Maria ou Porto Alegre. Decisão que, talvez, seja anunciada no próximo dia 18.
Julgamento único
O MP estadual quer reunir os quatro réus do processo em um mesmo júri. Isso porque o TJ-RS transferiu para a capital gaúcha o julgamento dos outros três acusados, os empresários Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann e do músico Marcelo de Jesus dos Santos. A defesa dos três alegou que, em Santa Maria, havia o risco de os jurados agirem com parcialidade, devido à comoção que o episódio gerou na cidade de cerca de 280 mil habitantes. A tese é endossada pela Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria.
“Porque um [réu] seria julgado pelo conselho de sentença em Santa Maria, e os outros em Porto Alegre. Então, para evitar nulidade processual, mantivemos essa saída, junto com o MP”, disse o presidente da entidade, Flávio Silva. Flávio perdeu a filha mais velha, Andrielle Righi da Silva, que comemorava o aniversário de 22 anos com cinco amigas. Elas também perderam a vida no incêndio.
Ao contrário dos outros três réus, Leão não pediu o desaforamento do processo. Por causa disso, seu julgamento foi, inicialmente, agendado para ocorrer em Santa Maria. Mas como a Justiça negou o pedido do MP para que Spohr, Hoffmann e Santos também fossem julgados em Santa Maria, os promotores adotaram outra estratégia. Para que os quatro réus sejam julgados juntos, pediram que também Leão seja julgado na capital gaúcha. Busca-sem, assim, manter a regra de unicidade do julgamento, prevista no Código de Processo Penal.
A ação do MP contraria a vontade do próprio Leão, cujos advogados agem para manter o júri em Santa Maria. Os promotores, no entanto, sustentam que isso pode dar margem a futuras alegações de que o clima de comoção social na cidade influenciou a decisão dos jurados locais. Ao determinar a suspensão do início do julgamento até que os argumentos do MP sejam apreciados, o ministro Schietti lembrou que, quando necessário, o MP tem legitimidade para solicitar a transferência do júri a fim de garantir um julgamento justo. Mesmo contrariando a vontade do réu e de seus advogados.
Sinalizador
Leão era produtor musical da Banda Gurizada Fandangueira, que se apresentava no momento em que o fogo se alastrou pela Boate Kiss. O caso ocorreu na madrugada de 27 de janeiro de 2013. Outro dos quatro réus, Marcelo dos Santos, também integrava o grupo musical. Vocalista da banda, foi Santos quem usou o sinalizador (do tipo sputnik), cujas faíscas atingiram o forro de espuma inflamável da casa noturna. Isso teria provocado o incêndio, que se alastrou rapidamente e espalhou a fumaça tóxica que asfixiou muitos dos presentes. Spohr e Hoffmann, os outros dois réus pronunciados por 242 homicídios duplamente qualificados e pela tentativa de, no mínimo, 636 homicídios duplamente qualificados, eram sócios-proprietários da boate.
O TJ-RS prevê que o julgamento do processo da Boate Kiss será o maior da história do Poder Judiciário gaúcho. Em conjunto, a ação já reúne mais de 16,6 mil páginas, formando 79 volumes contendo documentos.